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Sobre o crescimento da direita radical nos sistemas democráticos

Sobre o crescimento da direita radical nos sistemas democráticos

A democracia atravessa uma crise profunda de valores e tem enormes vulnerabilidades que não tem sabido corrigir.

Existem muitas razões que poderão explicar o fenómeno do crescimento da direita radical nos sistemas democráticos. A democracia é uma enorme conquista que se consolidou na maioria dos regímenes europeus do pós-guerra, e mais cedo nos Estados Unidos. Com os seus defeitos (segundo Churchill, "a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros"), é o sistema que mais garante os direitos individuais, a livre iniciativa, a liberdade de opinião e de expressão, os direitos de minorias, e que melhor regula o equilíbrio entre interesses individuais e coletivos.

Mas a democracia atravessa uma crise profunda de valores e tem enormes vulnerabilidades que não tem sabido corrigir.

Em primeiro lugar coexiste com o sistema de organização capitalista da economia, não tendo sabido resolver os conflitos entre capital e trabalho, geradores de uma distribuição cada vez mais desigual de riqueza e de recursos. Invadida pelos interesses de um capitalismo desumanizado e desregulado, a democracia tem cedido aos discursos criadores de expectativas que não pode cumprir, a uma pressão enorme para necessidades insaciáveis de consumo, muito acima das necessidades, com um desperdício desmesurado, à ilusão do crescimento infinito, que não se traduz na melhoria da qualidade de vida, sobretudo das franjas esquecidas da sociedade, cada vez mais numerosas.

Em segundo lugar, está rapidamente a soçobrar à crescente influência das redes sociais. É a era da (super)desinformação, disseminada através das redes sociais, que são neste momento o veiculo virulento que mais propaga as ideias extremistas. A velocidade de propagação dessas mensagens e a dependência obsessiva dos meios digitais por parte das populações (a nível mundial) são responsáveis pelo gradual anulamento do ser racional e da sua capacidade crítica, face ao lixo a que está exposto. A natureza humana, no que tem de mais animalesco (sem querer insultar os animais), tem sido cada vez mais estimulada pelo recurso despudorado à mentira, falsidade, criação de “narrativas” recorrendo a uma linguagem primária, vazia de qualquer ideário consistente ou coerente.

As redes sociais são neste momento arma preferencial dos ditadores atuais e potenciais. Têm uma enorme capacidade de criação de verdadeiros exércitos de crentes e seguidores, sobretudo nas camadas mais vulneráveis da sociedade - as que não têm voz reivindicativa, as vítimas do isolamento, marginalização e pobreza. Aqueles que as elites decisoras visitam nas arruadas pré-eleitorais, mas que esquecem logo ao virar da esquina, quando as câmaras se desligam.

Mas o leque de consumidores do “ideário” extremista e populista é mais abrangente. Inclui uma população crescente de jovens (e não só) obsessivamente dependentes das redes sociais, alienados pela comunicação codificada minimalista que traduz um completo vazio de ideias e ideais. As redes desintegraram estruturas e referenciais morais e societais. Mataram o conhecimento, a cultura clássica, humanista e artística. Mataram a memória. Mataram Deus e a espiritualidade.

Estas democracias vulneráveis, dominadas por elites criadas no seio dos partidos políticos, ou nos lobbies da moda, afastados da realidade dos que sofrem, coniventes do progresso sem ideais, depreciaram o papel da educação, menosprezaram o papel das humanidades, da arte, da música, da literatura, da história.

A democracia tem rapidamente de encontrar meios para combater os que procuram a representação do caos, não olhando a meios. A Educação é, na minha opinião, o meio mais eficaz de criar defesas contra a incultura crescente, de estimular o sentido crítico, de fortalecer a estrutura moral dos jovens, a memória e o legado histórico, o respeito e a defesa intransigente da liberdade, da paz e do bem-estar dos povos.

As redes desintegraram estruturas e referenciais morais e societais. Mataram o conhecimento, a cultura clássica, humanista e artística. Mataram a memória. Mataram Deus e a espiritualidade

Mas para isso, precisamos de uma escola e de agentes interventivos e lúcidos (professores, encarregados de educação, famílias, dirigentes escolares, sindicatos, etc.) perante os perigos que a humanidade enfrenta totalitarismos, pobreza e, sobretudo, guerra, a irracionalidade da guerra em que irmãos matam irmãos, com milhões de refugiados sem nada, sem futuro, com a crueldade levada ao extremo mais inimaginável, a que os senhores da guerra, as indústrias de armamento e os chamados interesses geoestratégicos nos estão a conduzir.

E essa escola não pode deixar-se infiltrar ou ser condescendente para com as tecnologias, as pedagogias e as metodologias da moda. Tem de educar e ensinar transmitindo conhecimento, cultura e valores. Tem de ser exigente e não pactuar com facilitismos impostos pela “beleza” das boas estatísticas, ou pela pressão dos financiamentos. Tem de ser firme na convicção do valor do conhecimento e da cultura que faz de nós seres únicos na defesa da justiça dos valores democráticos, dos valores da convivência integradora, pacífica e respeitadora das diferenças entre os povos.

Pode ser esse o antídoto. Mas tem de se agir rápida e decididamente.

Uma última nota para os media, sobretudo televisões. Exagera-se, na minha opinião, na quantidade de programas e na presença dos especialistas em comentário político (politólogos, jornalistas, analistas, sociólogos, economistas, etc.). Embora compreenda, penso que, genericamente, esses comentários pecam por se centrarem exageradamente na trica e no tacticismo político-partidário, cedendo, em muitos casos de forma pavloviana, às reações (habilmente exploradas) sobretudo do presidente do Chega. Ao usarem uma linguagem que se especializou na análise microscópica da atualidade (que acontece a uma velocidade estonteante) e numa futurologia do imediato, os media afastaram-se de uma possível pedagogia que poderiam exercer. Não são ouvidos pelos apaniguados desse partido, com toda a certeza. Mas o protagonismo e o “palco” que dão ao seu líder, que, diga-se de passagem, sabe explorá-lo com muita inteligência, ajudam a propagar a influência deste.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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