expresso.ptDaniela Nunes - 2 abr. 06:59

A Última Fronteira: quando a geografia trai a humanidade

A Última Fronteira: quando a geografia trai a humanidade

Quanto vale a vida de um refugiado? A pergunta pode até soar cruel. Afinal, o valor de qualquer vida humana é incomensurável. Mas há um livro recentemente publicado que demonstra como a vida de um refugiado tem um preço, e esse preço depende da nacionalidade.

A Última Fronteira. A capa deste livro, em fevereiro passado lançado, denuncia com honestidade o conteúdo das 343 páginas que se lhe seguem. Um pequeno barco no meio do mar. Muitas pessoas, excesso delas, dentro desse barco. Outras dentro de água, de braços levantados, como quem pede socorro. Trata-se, é claro, de uma obra sobre a dramática sina dos refugiados.

O autor desta obra, André Carvalho Ramos, é um jornalista português, nacional e internacionalmente reconhecido. Está nele, como na profissão, o gosto pela descoberta, pela procura incessante de respostas e pelo storytelling. Foi isso, entre outras coisas, o que o motivou a iniciar uma investigação sobre o fenómeno desumano que envolve ser-se refugiado.

A Última Fronteira é uma narrativa que beneficia em grande medida da curiosidade intelectual, como da humanidade do seu autor. Porque é de uma inquietação fundamentalmente humana que resulta este livro: com quantos pesos e quantas medidas se constrói a retórica europeia sobre os refugiados, seus direitos e oportunidades? O livro de André Carvalho Ramos oferece-nos uma resposta emocionante a esta pergunta. Essa resposta, por seu turno, conduz-nos ao levantamento de várias outras questões, sobre a Europa, os europeus, o propósito da nossa comunidade e o nosso próprio propósito enquanto homens e mulheres confortavelmente sentados a assistir à construção da História em lugares onde julgamos nunca vir a estar, por uma sorte geopolítica.

Foi nestes lugares que André Carvalho Ramos andou durante 8 anos, desde 2016. O livro que agora lança é fruto de uma investigação profunda, de caneta e bloco na mão, com um pé nas instituições que ditam as regras (a União Europeia, as Nações Unidas) e o outro nas terras onde essas regras ditam a vida ou a morte. Este livro é diferente dos outros, porque é o autor quem procura, literalmente, a sua própria história dos refugiados. Pelo Mediterrâneo, nas principais rotas migratórias, algumas das mais perigosas, em campos onde a vida consiste apenas em esperar pelo próximo amanhecer. Foi aqui que as linhas de Carvalho Ramos foram escritas. Os testemunhos são reais, as perguntas originais, as respostas perturbadoras.

Os fortes fluxos migratórios resultantes de um conflito em determinada zona do globo são tão antigos quanto a própria guerra na sua qualidade de fenómeno paradigmático da política internacional. Por outras palavras, quero dizer, não foi com a guerra na Síria que estes fluxos se tornaram um evento da política internacional. Mas foi porventura com a guerra na Síria que o assunto se tornou extremamente mediático. São condições distintas.

As guerras dão origem a situações de perigo extremo, que por sua vez conduzem populações inteiras à necessidade de abandonar as suas terras natais e fugir. É justamente deste quadro que deriva a definição de refugiado proposta pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR): “Pessoa forçada a sair do seu país e a procurar segurança noutro.” A esta definição são alheios fatores como a nacionalidade, a religião, a tez, o sexo, a idade, a profissão. Mas o que a História recente provou é que, na prática, alguns destes elementos comprometem o destino daqueles que iniciam uma luta pela sobrevivência na sequência de uma guerra que não escolheram travar.

Em fevereiro de 2022, tudo mudou com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mudou o mundo, mudou a política e mudaram os planos de André Carvalho Ramos, que encontrou nos primeiros meses pós-invasão russa um leitmotiv comparativo, um argumento original, para contar a sua história dos refugiados, que é, afinal, uma história dual. Aquela “operação militar especial” transformou em muito pouco tempo a problemática associada aos refugiados numa questão verdadeiramente europeia. Passou a prestar-se uma atenção distinta a este assunto, como se a cada europeu o infortúnio de um ucraniano aleatório dissesse respeito – e diz, indiretamente.

O domínio das agendas dos países europeus desviou-se completamente a Leste, enquanto uma onda de solidariedade sem precedentes ocupou as sociedades nestes países a ajudar, a receber e a proteger o povo ucraniano. Nada disto está errado, muito menos fora do âmbito moral de uma comunidade como a europeia. O que há de inédito acerca da resposta da Europa à crise ucraniana está no próprio termo. Se a Europa já havia sido assolada pelo infortúnio sírio, afegão, e até pelo palestiniano, por que razão é inédita a sua resposta à migração de milhões de ucranianos, pelo imperialismo Putinista amedrontados, esvaziados e desalentados?

A guerra na Ucrânia aproximou-nos de um conjunto de ideias e dilemas que, de repente, ganharam um caráter palpável. Aceleraram-se procedimentos, acionaram-se mecanismos antigos e criaram-se outros novos, alteraram-se as prioridades, uniram-se esforços e cumpriram-se, em alguns casos pela primeira vez, algumas das promessas mais antigas do projeto europeu. Porquê? O que é que de não geográfico pode separar um afegão de um ucraniano? E que diferenças podem distinguir a grávida de Mariupol da grávida de Aleppo? Quantos barcos cheios de sírios naufragam por cada ucraniano integrado numa qualquer capital europeia?

Foi do contraste que envolve estas perguntas e as respostas para elas que se ergueu o argumento irrepreensível de André Carvalho Ramos, cujo principal desígnio é demonstrar como a Europa está efetivamente disponível para acolher refugiados, mas apenas alguns. À emoção de uma leitura como esta, somam-se o rigor e a qualidade da escrita, num produto que coloca o desafio literário acerca desta temática numa fasquia muito elevada.

Durante o primeiro mês de guerra, em março de 2022, Portugal concedeu proteção internacional a quase 30 mil ucranianos, número que praticamente duplicará nos meses seguintes. Três anos antes, em 2019, o governo português assinou um acordo bilateral com a Grécia para receber mil pessoas que estavam retidas em campos de refugiados gregos. Destes, chegaram apenas cem. São pessoas que sofreram os mesmos males da guerra na Ucrânia. (...) A máquina pesada e carrancuda do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras revelou-se afinal muito eficaz quando quis. Conseguiu pôr a funcionar um mecanismo que permite aos ucranianos terem automaticamente estatuto de refugiado por um ano, renovável por mais um. Sem uma entrevista ou qualquer tipo de escrutínio. Outros, de países como a Síria, o Iraque, ou a Turquia aguardam há anos por essa mesma oportunidade e cumprem todos os requisitos. (Página 25)

Nota: não constitui desígnio da obra em questão ou deste artigo de opinião sugerir que algum povo merece prioridade no acesso ao estatuto de refugiado ou à proteção por parte de outro país. Pelo contrário, e em condições ideais e de justiça, todos os povos, de todas as nacionalidades, devem ter igual direito a estas oportunidades, independentemente do seu local de nascimento.

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