expresso.ptFrancisca Van Dunem - 2 abr. 07:37

António Costa: uma estranha ironia

António Costa: uma estranha ironia

Nas conversas que fomos mantendo durante o período de elaboração da Estratégia Anticorrupção quis, muitas vezes, com o seu sentido de pragmatismo, ir bastante mais longe do que eu - então Ministra da Justiça. Não identifico, no Portugal democrático, outro decisor político que tenha ido tanto para além das palavras no combate à corrupção

Em 2021 o Governo aprovou uma Estratégia Nacional Anticorrupção e fez aprovar no Parlamento um conjunto de medidas legislativas ali previstas.

Nesse âmbito, foi aprovado o Regime Geral de Prevenção da Corrupção e instituído um Mecanismo Nacional Anticorrupção, a operar essencialmente na vertente preventiva e na recolha e tratamento de informação. Foram adotadas medidas legislativas visando favorecer a quebra dos pactos de silêncio entre corruptores e corrompidos, a separação de processos, para evitar os megaprocessos e a facilitação da produção de prova em julgamento.

Terá sido, porventura, a maior e mais integrada intervenção legislativa orientada para a prevenção e repressão da corrupção, desde 2002.

O ano de 2002 é considerado, com justiça, um ano de viragem na capacidade de acesso do Ministério Público, do Juiz de Instrução e da Polícia Judiciária a informação essencial à investigação de crimes de corrupção e à criminalidade conexa.

A Lei n.º 5/2002, que o Parlamento aprovou por proposta do Governo, veio facilitar o acesso a um conjunto relevante de informação, coberta pelo segredo profissional, cuja quebra implicava, até então, um procedimento moroso e de difícil confidencialidade.

O Ministério Público passou a ter acesso direto às bases de dados da Administração Tributária, assim como a informações sobre contas bancárias de qualquer cidadão ou empresa e respetivos movimentos, às transações financeiras, com a identificação dos titulares e de todos os intervenientes nestas operações. Passou também a poder pedir ao juiz de instrução que ordenasse o controle de contas bancárias ou contas de pagamentos, obrigando, assim, a instituição de crédito, de pagamento ou de moeda eletrónica pertinente a comunicar-lhe quaisquer movimentos sobre a conta, nas vinte e quatro horas subsequentes. A partir de 2002, o Ministério Público começou a poder seguir efetivamente o rasto do dinheiro, vencendo uma primeira barreira de dificuldades.

Ainda em matéria de meios de obtenção da prova, a Lei 5/2002 veio autorizar o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem conhecimento nem consentimento do visado. Assim se tornaram lícitas as chamadas escutas ambientais e a gravação de imagens dos escutados, podendo ambas ocorrer em simultâneo.

Às vigilâncias e à interceção de comunicações, veio juntar-se a gravação de conversas em direto, assim como a gravação das imagens correspondentes.

Já em 2001, também por iniciativa do Governo, o Parlamento definira o regime das ações encobertas, com utilização restrita à investigação de um grupo de crimes de catálogo, nos quais se incluía a corrupção.

Mas, porventura a medida mais emblemática da Lei 5/2002 é uma forma peculiar de perda de bens a favor do Estado: a perda alargada.

Os recentes debates para as eleições legislativas evidenciaram, por parte de alguns protagonistas, um incompreensível grau de ignorância em relação a uma Lei da República com mais de 20 anos.

De facto, desde 2002, nos crimes de corrupção e na criminalidade conexa, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património total do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. Essa diferença deve ser declarada perdida a favor do Estado. A noção de património a que a lei atende é ampla. Constituem património do arguido não só os bens que estejam na sua titularidade, como também aqueles de que beneficia, ainda que não registados como seus, e aqueles em relação aos quais exerce uma relação de domínio. Consideram-se ainda bens do arguido os que este tiver transferido para terceiros, a título gratuito ou mediante uma contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, bem assim como os recebidos no mesmo período.

Existe, pois, legislação atual e operante que permite garantir a perda a favor do Estado de património obtido através de corrupção.

Importa é que o Ministério Público atue diligentemente no sentido de promover a identificação dos bens e proceda à sua liquidação, apurando a diferença entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos.

A produção deste acervo legislativo que veio criar um Regime de Prevenção da Corrupção e colmatar as falhas mais gritantes sentidas na sua investigação tem em comum um protagonista: António Costa. Como Primeiro Ministro do XXI, XXII e XXIII Governos Constitucionais, António Costa colocou o combate à corrupção como uma das prioridades da Justiça. Antes, como Ministro da Justiça do XIV Governo promoveu, no curto espaço de 2 anos e meio, a legislação sobre ações encobertas; fez aprovar a Lei 5/2002, que alterou o abissal desequilíbrio de meios entre investigadores e investigados; e consagrou a perda a favor do Estado do património incongruente com os rendimentos lícitos dos arguidos condenados por corrupção ou por crime conexo.

Foi também, por impulso seu, e nas mesmas circunstâncias temporais, que foram criadas condições para garantir a retenção dos magistrados do Ministério Público com maior experiência e antiguidade nos Departamentos de Investigação e Ação Penal e que a Polícia Judiciária viu, por duas vezes, modernizada a sua organização interna e reforçada a sua capacidade em meios humanos e materiais.

Nas conversas que fomos mantendo durante o período de elaboração da Estratégia Nacional Anticorrupção quis, muitas vezes, com o seu sentido de pragmatismo, ir bastante mais longe do que eu - então Ministra da Justiça.

Não identifico, no Portugal democrático, outro decisor político que tenha ido tanto para além das palavras no combate à corrupção.

É por isso que, no momento em que cessa funções, me sinto impelida a recordar o seu comprometimento ativo e o legado que deixa no enfrentamento da corrupção, sinalizando a estranha ironia histórica das circunstâncias da sua demissão.

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