expresso.ptAgostinho Lopes - 13 fev. 07:53

Ocultação - em memória de Maria Lamas

Ocultação - em memória de Maria Lamas

Não é possível depois do que é conhecido sobre a sua biografia, disponível e relembrada nalguns dos textos publicados, fazer de conta que Maria Lamas não foi militante do PCP, antes e depois do 25 de Abril

Custa assim tanto escrever e dizer que Maria Lamas foi comunista? Militante do PCP? É o que parece, quando se escrevem textos elogiosos, de louvor e enaltecimento e em que essa imprescritível e irrecusável condição de uma mulher que se chamou Maria Lamas é apagada, ocultada, esquecida, subsumida, feita nota de rodapé. Se quiséssemos ser chocarreiros no registo diríamos que alguma gente (demasiada gente para o meu gosto), como o Diácono Remédios, engasga-se, gagueja quando se trata de pronunciar e escrever o substantivo «comunista». É um espanto ver, 50 anos depois da Revolução de Abril, o preconceito anticomunista cavar tão fundo!

Sendo que em 2 de Dezembro se completaram 40 anos da sua morte, muito se tem feito e bem nos últimos anos, e mais recentemente em 2023, para recordar Maria Lamas e algumas das suas dimensões mais destacadas no campo da intervenção cívica, social e política, como resistente antifascista e lutadora pelas causas das mulheres, pela Paz, como escritora e jornalista. A juntar a muitas outras, naturalmente Iniciativas do Movimento Democrático das Mulheres de que foi signatária na sua formalização após Abril da Escritura Pública e Presidente Honorária e do PCP. De referir as valiosas iniciativas do jornal Público ao publicar na Colecção Biblioteca da Censura, 13.º Volume, duas das suas obras – «Congresso Mundial de Mulheres» e «Duas Conferências em Defesa da Paz» (esta com a participação de Teixeira de Pascoais) –, obras proibidas pela censura imposta pela ditadura fascista. E, ainda, promovida pelo Público (com o apoio de inúmeras entidades públicas e privadas), a publicação da sua obra monumental «As Mulheres do Meu País», iniciada em Junho, em 15 fascículos, tal como a edição original. E a culminar estas manifestações culturais, jornalísticas, sociais, políticas, a abertura a 26 de Janeiro, na Fundação Calouste Gulbenkian, de uma Exposição centrada em 67 das fotografias das 160 presentes na obra referida, tendo como Curador Jorge Calado.

, e mesmo se só após a Revolução, como todos os membros do Partido que já o eram antes, formalizou essa sua condição. E não é possível caracterizar a condição política de Maria Lamas e as suas múltiplas dimensões e diversificadas actividades políticas, como «activista», ou mesmo «activista política», ou apenas reduzi-la a «activista feminista», mesmo sabendo-se que uma dessas dimensões foi uma persistente intervenção na luta das mulheres e pelas mulheres (1). O que é isto de ser «activista»?! O que identifica, qual o conteúdo de tal palavra? Não houve durante a ditadura, e há hoje, activistas de direita? (se há!). Será que cabe nessa semântica a militante do PCP, Maria Lamas, com intervenção e participação em muitas das frentes de resistência, acção, luta, que o PCP dinamizava, articulava, dirigia, contra o fascismo e a ditadura, inclusive na dimensão internacionalista da luta das mulheres pela paz e contra a guerra, pelo progresso social e a democracia, pelo socialismo? Como é possível que se escreva um texto de 10 páginas, como o que apareceu na Revista Visão, «Maria Lamas, Vida de Resistente» (25JAN24), em que falando, e muito, da sua actividade antifascista e do seu longo percurso biográfico não se faz qualquer referência ao PCP, nem à sua condição de comunista?! Pior: apresentando fotografias de Maria Lamas com outras figuras antifascistas, incluindo Mário Soares e Manuel Alegre, e nem uma com membros do PCP! Que as há, incluindo com Álvaro Cunhal, e estão disponíveis!

Alguém pretenderia que toda e qualquer invocação de Maria Lamas, peça jornalística, artigo, programa audiovisual, contivesse sempre a tal referência ao PCP? Não! Se a tivesse não era mentira, mas não, não é isso que se quer afirmar. Até se julga perfeitamente aceitável e correcto que, face à natureza do texto/programa, tal não caiba, não seja adequado nem necessário. Mas é absolutamente obrigatório, sob o risco de ser classificado como facciosismo, anticomunista primário mas envergonhado, que em abordagens sobre a sua biografia e o seu percurso político e cívico não seja escondido, e bem pelo contrário explicitamente assumido e afirmado. Como se faz na Exposição na Gulbenkian, assinalando que, em 1974, Maria Lamas se inscreveu no PCP.

Custa muito a alguns/algumas, mas há algo que não devem perder de vista. Se como diz o Curador Jorge Calado na referida Exposição: «que cresceu a ouvir dizer que Maria Lamas foi a figura mais importante de Torres Novas, mas hoje, com a “sabedoria da velhice”, sabe que foi a mulher mais notável do século XX português» (2), então é legítimo concluir que «a mulher mais notável do século XX português» foi comunista, militante do Partido Comunista Português! (3)

Para memória, e esforço para travar amnésias e revisionismos históricos, uma breve citação (4):

«Faleceu Maria Lamas

8 Dezembro 1983

Após uma vida de luta em defesa dos direitos da mulher, da criança, dos oprimidos, em defesa da Liberdade, da Paz e da Democracia, Maria Lamas faleceu na madrugada do dia 6, com 90 anos.

Mas não nos deixou.

Continua entre nós, mulheres e homens deste País, a quem deixou o exemplo da sua combatividade, determinação, coragem e confiança no futuro.

Presa várias vezes pela PIDE,durante o fascismo, demitida do cargo de directora da revista «Modas e Bordados», a então Presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, a presidente honorária, após 1974, do Movimento Democrático das Mulheres, a Directora da revista «Mulheres», a escritora de «As Mulheres do meu País», de «A Mulher no Mundo» e de tantos outros livros, para crianças e adultos, foi em vida e continuará a ser na memória de todos nós, uma grande militante antifascista, da causa da Paz e de Amor entre os homens, de liberdade, do progresso e do socialismo.

Membro do Conselho Mundial da Paz, da Federação Democrática Internacional das Mulheres (FDIM), onde em pleno fascismo representou em Congressos internacionais as mulheres democratas da nossa terra, condecorada várias vezes – Ordem da Liberdade, medalha Eugénie Cotton, medalha da FDIM, medalha de honra do MDM, entre outras – Maria Lamas, ali onde esteve, honrou o Partido a que pertencia há cerca de 40 anos – o PCP – que para ela personificava os superiores ideais de dignificação do ser humano e de libertação da mulher.»

NOTAS:

(1) Alguns exemplos dessas formulações esquisitas e/ou esquecimentos compulsivos: «jornalista, escritora e activista», Andreia Oliveira, Público, 24ABR23; «o activismo político e feminista foi duramente reprimido pelo regime», da Redacção do Público, 22ABR23; «jornalista, escritora e activista feminista», texto da Lusa, 28FEV22, a propósito de Exposição de ilustrações de Marta Nunes, a partir das Mulheres do Meu País; «activista política que dedicou a sua vida à causa feminina», texto do Público, 06JUN23, de lançamento do 1.º Fascículo das «Mulheres do Meu País»; «Esta grande lutadora pela causa feminina», Teresa Ribeiro, Público, 08MAR23; «ficcionista, poeta, autora de livros infantis, tradutora e fotógrafa», Ana Pina, Jornal Económico, 02JAN24; «Mais Ribatejo», 18DEZ23 e Esquerda NET, 31DEZ23; «jornalista e escritora que lutou pela paz e pela emancipação feminina, sempre na oposição ao Estado Novo», Lucinda Canelas, Público, 26JAN24; etc., etc.

(2) Artigo «O século de Maria Lamas» de Cristina Margato, A Revista do Expresso, de 19JAN24, onde a autora não se esquece de escrever da sua filiação no Partido Comunista e de avaliar a sentença conclusiva de Jorge Calado «Não me parece que esteja errado».

(3) Em painéis de introdução à Exposição assinados por Jorge Calado escreve-se: «Maria Lamas (Torres Novas 1893 – Lisboa 1983) foi a mais notável mulher de Portugal no século XX».

(4) In jornal Avante!, n.º 518 - Ano 53 - Série VII.

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