expresso.ptCorina Lozovan - 12 fev. 07:07

A Líbia, entre o mito e a realidade

A Líbia, entre o mito e a realidade

No turbilhão geopolítico do Médio Oriente, muitas vezes esquecemos dos países geograficamente próximos da Europa, como a Líbia, que enfrenta sérios riscos de segurança. A União Europeia deveria desempenhar um papel mais ativo na promoção da reconciliação e na reconstrução das estruturas de segurança, uma vez que isso beneficia não só a região, mas também contribui para a estabilidade do Mar Mediterrâneo

Quando penso na Líbia, vem-me sempre à mente o épico cinematográfico "O Leão do Deserto". Neste filme, Anthony Quinn interpreta a figura lendária de Omar al-Mukhtar, simbolizando a corajosa resistência do povo líbio contra a colonização italiana. Esta saga histórica de luta e determinação ressoa até aos dias de hoje, enquanto o país, apesar de ter conquistado a sua independência, continua a enfrentar desafios monumentais.

Desde tempos imemoriais, a Líbia tem sido objeto de mitificação e fantasia tanto por estrangeiros como por grupos locais. Num cenário onde a estabilidade política é uma miragem, encontra-se uma realidade que negligencia o quotidiano do seu povo. Os discursos sobre a paz são obscurecidos pelas lutas de poder internas e intervenções externas que, apoiando diversos atores, subvertem qualquer possibilidade de um acordo pacífico.

A fragmentação interna é um reflexo vívido da persistência de uma malaise imperialista que instrumentaliza a guerra como forma de reprodução do capital imperial. Essa divisão do país, exacerbada por interesses geopolíticos, alimenta um ciclo de instabilidade e conflito. As forças imperialistas, sejam elas representadas por potências estrangeiras ou por corporações, aproveitam-se das circunstâncias para ampliar a sua influência e explorar os recursos da região, à custa do povo líbio e da sua estabilidade socioeconómica.

As condições políticas e as dinâmicas de segurança apresentam uma notável discrepância em relação às aspirações que motivaram a queda de um regime com décadas de existência. Desde o colapso do governo de Muammar Kadhafi em 2011, o país tem vivenciado oscilações entre períodos de relativa estabilidade e confrontos abertos, enquanto a prometida transformação democrática permanece ilusória. A paisagem política e de segurança atual reflete uma configuração militar marcada por centros de poder em competição, cujos líderes utilizam a sua influência para obter vantagens políticas e financeiras. Neste processo, assistimos a uma institucionalização desses grupos nos mais altos níveis, em que as milícias se tornaram o próprio Estado. Isto acarreta consequências graves, que podem desencadear uma potencial escalada de conflito armado.

A resposta da comunidade internacional, pautada por políticas díspares e pela divergência de interesses, demonstrou-se inadequada para solucionar este impasse na Líbia. Enquanto isso, as fações locais militarizadas prosseguem na consolidação do seu domínio nos territórios, minando a autoridade nacional e perpetuando uma dinâmica corrosiva que ameaça qualquer tentativa de estabilidade. A interação de interesses opostos e a ausência de uma ação coordenada a nível internacional deram origem a estes atores "híbridos" mais sofisticados, que controlam recursos vitais. Nestes confrontos de poder, os grupos armados exercem uma influência considerável sobre várias áreas estratégicas, impedindo qualquer forma de unificação sob uma autoridade centralizada e democrática. Este prolongado impasse causou danos ao crescimento económico e ao desenvolvimento social, como também exacerbou a vulnerabilidade do país.

Os desafios oriundos desta conjuntura reverberam não só dentro do território líbio, mas também afetam diretamente as nações vizinhas, como a Tunísia e o Egito. Para além disso, impactam a Europa, onde a instabilidade política e a insegurança têm propiciado um considerável aumento no fluxo migratório pelo Mediterrâneo, à medida que os migrantes buscam asilo e melhores oportunidades no continente europeu. Esta circunstância não só sobrecarrega os sistemas de receção e integração europeus, mas também culmina em tragédias no mar, com um alarmante número de mortes entre os migrantes. A ausência de uma política europeia consensual para enfrentar a migração e os perigos de segurança na Líbia cria uma lacuna na capacidade de resposta da União Europeia, acentuando as tensões entre os Estados-membros e dificultando a eficaz resolução dos problemas na região.

Enquanto o país é muitas vezes visto como um tabuleiro de xadrez geopolítico, a condição dos cidadãos comuns é frequentemente relegada a segundo plano. A fragmentação social e os desafios psicológicos emergem como aspetos cada vez mais proeminentes, especialmente entre a juventude líbia. Diante da escassez de oportunidades educacionais e de emprego, estes jovens veem-se confrontados com um horizonte futuro incerto, predispondo-os à radicalização e à migração irregular. Esta condição de desesperança e desenraizamento não apenas compromete o bem-estar individual dos jovens líbios, mas também representa uma ameaça considerável ao progresso social e à estabilidade a longo prazo do país.

O mito e a realidade muitas vezes se entrelaçam e por vezes são difíceis de distinguir. A maioria das abordagens sempre privilegiou a análise macro do país, ignorando a resistência da vida quotidiana, que pode ser um espaço para soluções e oferecer visões mais pragmáticas de reorganização dos assuntos políticos. Alguns estudos no contexto das intervenções humanitárias têm procurado analisar os cidadãos líbios como os principais agentes do seu próprio país, especialmente durante o período em que a sociedade civil ressurgiu em 2012. No entanto, essa tentativa de consolidação foi interrompida pela guerra civil, agravando ainda mais a divisão entre as regiões leste e oeste do país. De qualquer forma, é importante reconhecer a multiplicidade da Líbia e considerar as perspetivas das pessoas em relação à autoridade e legitimidade do poder, bem como as suas implicações para o futuro próximo.

Uma estratégia internacional, com o envolvimento das Nações Unidas, pode desempenhar um papel fundamental na construção de um presente contínuo mais estável. Ao invés de perpetuar divisões e conflitos, é necessário fomentar a cooperação e o entendimento mútuo entre todas as partes envolvidas. Apenas através de um esforço conjunto e uma abordagem cirúrgica, utilizando tanto incentivos e apoios quanto sanções, é que se poderá vislumbrar um caminho para a reconciliação e o desenvolvimento duradouro no país. Isso não só ajudará a mitigar os riscos de segurança, mas também oferecerá uma perspetiva de esperança aos jovens líbios, capacitando-os a moldar o futuro do seu país e das suas próprias vidas.

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