www.publico.ptpublico@publico.pt - 12 fev. 15:18

O SNS na encruzilhada

O SNS na encruzilhada

Transferir a gestão do SNS do Ministério da Saúde para a Direcção Executiva não tem qualquer benefício operacional e deixa a maior fatia do OE nas mãos de uma estrutura paralela da administração.

Todos os países enfrentam problemas, de sustentabilidade e de adequação da oferta assistencial, nos seus sistemas de saúde, acelerados pelo desenvolvimento técnico-clínico exponencial e respectivos custos. Em Portugal, onde o serviço público ainda é dominante, o panorama geral é-nos dado pelas várias entidades oficiais que acompanham o sistema de saúde, aportando estatísticas e recomendações.

Na evolução financeira, embora a percentagem do PIB dedicado ao SNS se tenha mantido estável, a quota da despesa pública nos gastos globais em saúde tem vindo a reduzir-se, estando bem abaixo da média da UE (60 versus 80%). O défice do SNS é constante, sobretudo pelos acréscimos da despesa corrente.

Na vertente assistencial, as questões essenciais são: elevado número de utentes sem médico de família; pressão sobre os serviços de urgência; aumento das listas de espera para consultas e para cirurgias; parca resposta nos cuidados continuados.

A estrutura produtiva é débil: pequeno número de camas hospitalares e afins; desinvestimento tecnológico; grave carência de recursos humanos. As consequências da falta de médicos são dramáticas, afectando especialidades basilares, os números são enganadores, pois, entre nós, contabilizam-se todos os médicos inscritos na Ordem (20% com mais 67 anos, muitos já aposentados), enquanto outros países contam só os profissionais no activo. O número de enfermeiros está muito abaixo da média europeia.

Face à crise crescente do SNS, os sucessivos governos têm procurado soluções, mas porque não atacam as questões basilares, os resultados têm sido medíocres e o que se nota é a insuficiência de meios e a insatisfação geral. Os doentes obrigam-se a pagar do seu bolso para obterem tratamento nos prestadores privados. Os médicos seguem os doentes para melhorarem os seus proventos.

O actual Governo pôs fé nas mudanças da organização e da forma de gestão, instituindo uma Direcção Executiva nacional e a plena integração dos cuidados médicos. Num caso e noutro, adoptou um modelo pouco usual no contexto europeu.

Na criação da direcção executiva, foram descuradas exigências de transparência e de qualidade objectiva na selecção dos seus membros, lacuna que a CRESAP não conseguirá colmatar. Talvez por se depositar total confiança na idoneidade e prestígio do director executivo, deixou-se via aberta para escolhas subjectivas, baseadas em afinidades pessoais, confessionais, políticas, ou outras. Não se cuidou de copiar os ingleses, fonte de inspiração do SNS, cujo procedimento de nomeação é feito por concurso público, aberto.

Em meu entendimento, o nosso país, pequeno em dimensão, nada ganha em abandonar o modelo de gestão ministerial directa, antes vigorante, similar ao da maioria dos países europeus. A mudança de paradigma, transferindo a gestão do SNS do Ministério da Saúde, com estruturas idóneas e experimentadas, para a Direcção Executiva, não tem qualquer benefício operacional e vai colocar a maior fatia do orçamento do Estado, mais de 15 mil milhões de euros, nas mãos de uma estrutura paralela da administração pública, uma pirâmide de dirigentes nacionais e regionais, que pouco controlamos. Poderá ser uma solução apetecível para os interesses que se nutrem no aparelho do Estado, mas é um trilho perigoso, considerando o facto da nova entidade não depender directamente do escrutínio popular de cada ciclo eleitoral e a laxidão lusa na gestão da coisa pública.

Poderá ser uma solução apetecível para os interesses que se nutrem no aparelho do Estado, mas é um trilho perigoso

Outro assunto merecedor de reparo é o fundamentalismo adoptado na integração de cuidados. Sendo a integração uma tendência nos países com serviços públicos, não vislumbramos outro exemplo de integração total. Nem os ingleses foram tão longe. Agregar os hospitais tecnologicamente mais dotados e a medicina familiar, sob direcção comum, é um erro, que muitos entendidos já anotaram. Sendo a articulação um requisito da eficiência, todavia, a medicina moderna vive da especialização e da alta diferenciação, que não devem perder-se na amálgama comum. A medicina familiar em Portugal subiu a um elevado patamar e deve ser protegida. Seria mais avisado retirar das ULS os grandes hospitais universitários, muito demandantes, de modo a evitar a asfixia de uns e de outros. Mais do que plena integração, deveríamos caminhar para plena coordenação de níveis de cuidados, coisa que as ARS já arbitravam. O fim das Administrações Regionais de Saúde é em si questionável, pois empobrece a gestão participativa e reforça o centralismo dogmático do novo modelo de gestão.

Olhando agora para a evolução mais recente do SNS, período de gestão bicéfala, MS/DE, não vemos resultados satisfatórios. Embora a Direcção Executiva apresentasse ideias para mitigar constrangimentos parcelares, nenhuma questão de fundo foi resolvida. Assistimos, com preocupação, a um discurso quase normalizador das graves das falhas assistenciais. O marketing oficial vende-nos a falta de soluções sob o disfarce de funcionamento em rede. Por vezes, a argumentação fere a inteligência. É verdade que a nova estrutura ainda está em construção, mas esperava-se mais. Em muitos aspectos, o ambiente degradou-se. Os dirigentes intermédios, isto é, as direcções das instituições, quem melhor conhecem as especificidades locais, e que iam colando alguns pensos rápidos, foram diminuídos pela assunção do comando centralizado, ou substituídos por novos mandatários, pelo que as situações de rotura se agudizaram. Alguns bateram com a porta. Até a anunciada medida de incorporar, transitoriamente, médicos estrangeiros para garantir cuidados essenciais se deixou enredar. Em resumo, o novo modelo de gestão não se mostrou superior ao anterior.

Contrariamente a ideias propaladas, os grandes males do SNS não são problemas de gestão, mas sim de carências na estrutura produtiva. Reverter o caminho de degradação do SNS exige soluções políticas de fundo e não mera gestão. Isso implica saber que sistema adoptamos, e vontade de salvar o serviço público. Neste momento eleitoral, será obrigatório debater a natureza, a organização e o nível de cuidados médicos que queremos ter. Há regras de transparência de gestão e de controlo que terão que ser incorporadas, se persistir o actual modelo. Cada cidadão fará a sua escolha. Pessoalmente, entendo que um sistema público de saúde robusto é uma condição de solidariedade, de coesão social e de protecção individual.

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