www.sabado.ptRui Maciel - 12 fev. 10:34

Emigrantes e o direito ao voto: De grupos de trabalho está o inferno cheio

Emigrantes e o direito ao voto: De grupos de trabalho está o inferno cheio

Opinião de Rui Maciel

Se ser português não se limita a viver dentro das fronteiras físicas do nosso país, então por que é que o direito ao voto fica tão restringido para quem vive fora de Portugal? Neste texto, falar-vos-ei dos obstáculos existentes para os emigrantes exercerem o seu direito de voto. 

Nas últimas legislativas, no círculo da Europa, a abstenção foi de 88,20%. Quase 1 milhão de portugueses registados neste círculo optaram por não votar. Este número, por si só, deveria significar algo, já que é difícil acreditar que cerca de 9 em cada 10 emigrados não queiram participar na democracia portuguesa. 

Infelizmente, confirmei esta teoria assim que mudei a minha residência para fora de Portugal. Percebi que existem dois problemas principais: o primeiro decorre do "legalês" das várias leis, que nem os próprios funcionários conseguem traduzir adequadamente para português; o segundo é a falta de comunicação entre as várias instituições, que dificulta a cooperação entre elas.

Mas vamos por partes. No início, tudo está claro: "Para votar na sua nova área de residência, deve pedir e confirmar a alteração de morada no Cartão de Cidadão 60 dias antes de qualquer ato eleitoral." Este procedimento foi fácil. Procedi à mudança da minha residência através do site ePortugal, recebi a carta em casa, realizei os procedimentos necessários, e, automaticamente, em todos os serviços estatais a minha morada foi atualizada, inclusive o local de voto (parabéns ao Estado português por esta eficiência). Portanto, esta etapa demonstra que tudo o que é descrito de seguida pode ser alterado.

Onde nasceu o problema? Na questão da modalidade de voto. Não existe um procedimento claro para a alteração da modalidade de voto. Do outro lado, poder-se-ia perguntar: o que é a modalidade de voto? Refere-se à escolha entre votar por via postal (a opção padrão) ou votar presencialmente. É importante mencionar que a via postal teve bastantes problemas na última eleição, o que me levou a preferir o voto presencial. 

Aqui inicia-se um processo kafkiano à portuguesa, um processo extraordinariamente burocrático, mas no qual pelo menos toda a gente é muito simpática. Contactei o consulado, que me reencaminhou para a linha geral, e esta, por sua vez, reencaminhou-me para a agência responsável pelas eleições em Portugal. Após uma pesquisa na Internet, assumi que deveria ligar para a Comissão Nacional de Eleições (CNE), onde fui atendido e posteriormente direcionado para uma jurista. Após uma conversa muito agradável com a jurista da CNE — a quem aproveito para agradecer publicamente —, pude compreender que várias entidades estão envolvidas neste processo: a CNE, como órgão fiscalizador das eleições; a Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI), responsável pela organização das eleições; e o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), que gere a rede consular. A CNE verifica o cumprimento da lei, e informaram-me que, conforme a legislação, devo notificar o meu consulado da minha intenção de votar presencialmente. Surge, então, outra questão: como contactar o consulado e qual é o prazo para tal? A resposta é que não existe uma maneira única, e cada consulado tem o seu próprio procedimento. Ainda assim, naquele momento, era possível tentar, e assim o fiz: tentei agendar com o consulado, mas não havia uma opção específica para alterar a modalidade de voto. Marquei para outro tipo de atendimento e, ao chegar, expliquei a minha situação. Todos foram muito simpáticos e, no final deste percurso, consegui mudar a modalidade do meu voto. Em resumo, apesar da boa vontade e profissionalismo de todos, a falta de estrutura e clareza na legislação complica o exercício do direito de voto. 

No estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos intitulado "Afinal, quantas pessoas se abstêm em Portugal?", são propostas duas soluções para combater a abstenção eleitoral: a primeira é tornar o processo de recenseamento eleitoral para os portugueses residentes no estrangeiro mais flexível e atrativo (como por exemplo aumentar o número de representantes eleitos); a segunda é aprimorar o acesso ao voto à distância para os emigrantes, expandindo as opções de voto antecipado e em mobilidade para que se incluam nas embaixadas e consulados portugueses para todas as eleições. O estudo deixa claro o caminho, é necessário apenas vontade política para o executar. 

Por fim, e como se a situação já não fosse suficientemente sisífica, é importante recordar que, nas últimas eleições, se repetiu a votação no círculo da Europa devido a problemas com a validade dos votos. Durante a preparação deste artigo, procurei informações sobre eventuais alterações legislativas que tivessem sido aprovadas para prevenir que tal situação se repetisse. Foi então que descobri a formação de um grupo de trabalho, criado a 10 de abril de 2023 pelo governo, que tinha seis meses para apresentar as suas propostas. Não encontrei mais nada sobre o assunto. É mais um caso para dizer que de grupos de trabalho está o inferno cheio. 

Recomendações: 

Subscrevam a carta para a alteração dos moldes dos debates promovido pelo Conselho Nacional da Juventude. 

O álbum "Ser solidário" de José Mário Branco.

Oiça aqui o novo episódio do podcast Mão Visível, que arranca com a análise dos programas eleitorais das eleições legislativas de 2024. Esta semana, são analisados os programas da Iniciativa Liberal e do Livre.

Ouvir: A carregar o podcast ... Mais crónicas do autor 10:43 Emigrantes e o direito ao voto: De grupos de trabalho está o inferno cheio

Apesar da boa vontade e profissionalismo de todos, a falta de estrutura e clareza na legislação complica o exercício do direito de voto. 

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