www.sabado.ptMaria J. Paixão - 11 fev. 11:10

O romantismo cívico da agressão

O romantismo cívico da agressão

Opinião de Maria J. Paixão

Miguel Torga encapsulou como ninguém o morno caráter português: somos uma coletividade pacífica de revoltados, à qual falta o romantismo cívico da agressão. A vozearia que acompanha a bica raramente marcha para as ruas. Não temos o ímpeto contestatário dos franceses, cujo descontentamento tem literalmente o poder de incendiar. Mas não temos também o decoro e circunspeção dos ingleses, desconfiados de qualquer entusiamo, sobretudo do entusiasmo revolucionário. Seria, por isso, injusto reduzir-nos a um povo sereno de brandos costumes, eternamente impávido. Como cantava Zé Mário Branco, "eu vi este povo lutar". Construímo-nos, portanto, nesta tensão entre o descontentamento e o conformismo, frequentemente à maré dos tempos. E os nossos tempos pulsam cada vez mais.

O ano passado foi marcado pelo recrudescimento da contestação laboral em Portugal. Depois de um período mais letárgico, após as massivas manifestações do movimento Que Se Lixe a Troika e da Geração à Rasca, assistimos a greves e manifestações a correr nos vários setores da sociedade – dos professores, aos médicos e enfermeiros, passando pelos trabalhadores da cultura e do setor dos transportes…

A par das formas contestatárias tradicionais, emergiram em Portugal novas formas de protesto no campo da justiça climática. Nas escolas e universidades, os estudantes tomaram os espaços académicos para fazer aquilo que historicamente tem sido sua bandeira: democratizar as academias e, por essa via, democratizar o país; impelir a nação a confrontar-se com o seu futuro e com os desafios que se lhe colocam. Nas ruas da capital, dezenas de ativistas assumiram a linha da frente da luta contra as forças que nos precipitam coletivamente para uma crise sem precedentes – a crise ecológico-climática. No final do ano, o país assistiu surpreendido à renovação das estratégias combativas do movimento climático. Contudo, surpreendente mesmo é a estupefação e o desprezo de alguns setores da sociedade, considerando que acabámos de atravessar o primeiro ano em que a temperatura média global aumentou mais do que 1.5ºC. Este é o valor que a comunidade global, reunida em Paris em 2015, acordou definir como limite máximo ao aquecimento global. Há quase dez anos, portanto, praticamente todos os Estados do Mundo reconheceram que um aquecimento desta magnitude representava uma ameaça séria à sobrevivência das sociedades humanas. Uma vez que a produção global de gases com efeito de estufa não cessou – nem tão-pouco abrandou significativamente – é fácil compreender que nos encaminhamos para superar esse valor em boa medida. Se isto não nos alarma, pelo menos a sucessão vertiginosa de catástrofes naturais e recordes de temperatura devia; o excesso de mortes, a escassez de água, o aumento dos custos agrícolas, a devastação de comunidades inteiras, os incêndios arrasadores… deviam.

A semana passada foi marcada por uma nova onda de protestos, também ela marcada pela originalidade e pelo carater disruptivo das formas de ação. À semelhança do que ocorre por toda a Europa, os agricultores portugueses bloquearam diversas estradas em contestação das políticas agrícolas da União Europeia e do Estado português, sobretudo num período de seca como o que o país atravessa. Em Lisboa, num quadro diametralmente diferente, foi convocada uma manifestação "contra a islamização" para a zona do Martim Moniz. Dado o teor xenófobo e o potencial de risco para a segurança pública, a referida manifestação foi proibida. A decisão administrativa foi confirmada pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa. Procurando contornar a proibição, Mário Machado alterou o local da manifestação, que viria a realizar-se no Largo de Camões, com direito a tochas, very-lights, saudações romanas e discurso de ódio.

Duas notas interessantes merecem a nossa reflexão em torno desta panóplia de protestos. Em primeiro lugar, o bloqueio, tendo sido utilizado tanto pelos ativistas climáticos como pelos agricultores, suscitou reações públicas e judiciais completamente distintas. Ao passo que o apoio ao protesto dos agricultores foi praticamente unânime na sociedade portuguesa, apesar dos transtornos causados ao trânsito, as ações de bloqueio pelo clima geraram as mais vis reações, bem como dezenas de processos judiciais por crime de atentado contra a segurança rodoviária. Não está em causa, de modo algum, a justeza das reivindicações dos agricultores, as quais são, aliás, em boa parte consentâneas com aqueloutras dos ativistas climáticos. Todavia, o dualismo de reações merece consideração. Em segundo lugar, a intervenção policial no contexto da manifestação xenófoba de sábado reflete também esta dualidade de critérios, aqui porventura em moldes mais preocupantes: apesar da parafernália de símbolos de inspiração fascista e do incitamento ao ódio e à violência, a atuação das forças policiais dirigiu-se contra os protestastes antifascistas oriundos do arraial multicultural realizado em paralelo e não procurou conter o ímpeto desafiador do grupo de extrema-direita. Por contrapartida, em qualquer protesto climático o receio de detenções por ‘desobediência’ é constante e pervasivo. Torna-se, por isso, insólito que nenhuma ordem tenha sido dada para assegurar a ordem pública e que nenhum dos manifestantes de braço estendido se tenham sentido na iminência de serem detidos por incumprimento de tais ordens. Mais crónicas do autor 11 de fevereiro O romantismo cívico da agressão

Depois de um período mais letárgico, após as massivas manifestações do movimento Que Se Lixe a Troika e da Geração à Rasca, assistimos a greves e manifestações a correr nos vários setores da sociedade – dos professores, aos médicos e enfermeiros, passando pelos trabalhadores da cultura e do setor dos transportes…

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