Observador - 11 fev. 00:04
Ser rico é pecado?
Ser rico é pecado?
E o lítio das baterias dos carros eléctricos? É grave, mas será mais grave do que a gravidade do processo de locomoção literalmente baseado no transporte contínuo de carbono do solo para a atmosfera?
Diz a Bíblia que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no céu”. A frase pressupõe uma maldade tremenda por trás do acto de enriquecer e dir-se-ia que, nos tempos modernos, essa maldade é ainda mais refinada se tentarmos enriquecer à custa de actividades focadas em salvar o planeta. Isto depois de décadas de enriquecimento a destruir o planeta e explorá-lo até à exaustão o que, aparentemente, não viola o código moral de ninguém.
Tenho dificuldade em digerir esta lógica, por isso decidi tentar sistematizar algumas ideias e, porventura, desmontar alguns mitos.
Então vejamos…
Há alguns dias estava numa reunião em torno do tema sustentabilidade e alguém acusava os carros eléctricos de, tradicionalmente, terem mão de obra demasiado cara comparativamente à dos carros ‘normais’ e pois claro que o tópico ‘lítio’ e ‘baterias’ veio à baila. Mantive-me calado porque estava num Zoom, em frente a uma dúzia de quadradinhos, e tinha muito trabalho nas mãos, pelo que não me pareceu que valesse muito a pena o esforço de tentar doutrinar aquele grupo.
Mas apeteceu-me dizer “Espera lá… Ninguém resmungou com o custo da mão de obra que mantém os motores de combustão a funcionar há século e meio, tarefa que efectivamente moveu tantas toneladas de carbono do chão para o céu que ninguém as consegue contabilizar. E recordemos que ainda lá estão. Todas. Mas ‘o problema’ está no custo da mão de obra dos carros que se movem sem ser à custa da explosão de hidrocarbonetos dentro de um cilindro e expulsão dos gases pelo tubo de escape?” A sério?
E a gravidade do lítio das baterias dos carros eléctricos? Sim, é grave. Mas será mais grave do que a gravidade de um processo de locomoção literalmente baseado no transporte contínuo de carbono do solo para a atmosfera?
Nas minhas jantaradas aparece com frequência o tema “Os teus amigos ambientalistas andam-se a encher de dinheiro com estas tretas dos créditos de carbono e tal”. Pois andam. Porque, vendo bem as coisas, um século e meio de actividades cuja força motriz foi mover Carbono de baixo para cima não é o problema. Não senhor. ’O problema’ é que, agora, há uns “ambientalistas” que tentam neutralizar esse padrão com coisas horríveis, como seja plantar árvores e outras medidas que sequestram Carbono da atmosfera. Realmente, é preciso ter lata para tentar enriquecer à pala de resolver um problema que põe a nossa espécie em risco.
Nos ditos jantares aparece também o tópico ‘criptomoedas’. “Então e a tua Bitcoin, está a bombar?” perguntam-me, em tom sardónico. E a pergunta leva-me sempre ao palco do Teatro Nacional D. Maria II onde, dois dias depois do Natal de 2021, falei sobre alterações climáticas e respondi à mesma questão no final do evento, colocada por alguém no público. O silêncio na sala depois da minha resposta não escondeu a decepção por eu não ter atacado a blockchain por ser um monstro devorador de energia.
Expliquem-me por favor, como é que um monte de servidores que estão a gerir transacções de criptmoedas, algo que é absolutamente críptico para a esmagadora maioria da população (daí o nome, topam?), pode ser mais pernicioso do que o sistema bancário normal? Desde quando é que os servidores da Caixa Geral de Depósitos, Santander, Deutsche Bank, Barclays, Fannie Mae, Goldman Sacks, HSBC, Wells Fargo, (…) e afins convencionaram que iriam funcionar todas a energia solar e/ou eólica e/ou hídrica? Então e os balcões/agências/delegações/sedes com as luzes, ares condicionados, computadores e deslocações diárias dos milhões de funcionários – e clientes?
De acordo com os cânones modernos, esta uber-máquina infernal de fazer dinheiro, que teve lucros históricos no ano passado — o mesmo ano em que tantas famílias perderam as suas casas porque não conseguiram acompanhar o aumento das prestações — não é um problema de excesso de consumo de energia. Não. O problema está nos servidores das criptmoedas.
Pois claro.
Ironicamente, muitas destas discussões tomam lugar naquelas plataformas onde toda a gente dá a sua opinião livremente. Como é que se chamam?… As “redes”… “sociais”, não é? Que, como é óbvio, são movidas a servidores mais verdes que a mancha (pré-Bolsonaro) da Amazónia. Os triliões de fotos, vídeos, comentários e gatinhos fofinhos que circulam – e se acumulam – por esse planeta fora a cada segundo não são um problema energético. Claro que não. As criptmoedas é que vieram definitivamente dar cabo disto tudo.
Já para não falar nos outros websites todos, como a Amazon e uma lista mais ou menos interminável de comerciantes, retalhistas e prestadores de serviços que vendem tudo, desde lingerie sedutora a xarope para a tosse, passando por um telemóvel fresquinho sempre que sai um modelo novo, claro. Todos esses ziliões de servidores e consumismo desenfreado, como bem sabemos, são movidos a energia estritamente limpa e isenta de qualquer mácula carbónics. Só os servidores das criptomoedas é que vieram para poluir o planeta, que estava tão bem e numa rota tão apontada a um futuro de bondade e felicidade, até os mauzões da Bitcoin virem poluir o ambiente limpíssimo que se respirava antes.
Como disse o comandante Sully durante as audiências em que tentaram crucificá-lo por ter aterrado um avião no Rio Hudson, salvando 155 almas: “Can we get serious, now?”
Quando é que a Humanidade se virou contra as pessoas que tentam resolver problemas e começou a acusá-las de quererem enriquecer à custa disto?
Expliquem-me, como se eu tivesse cinco anos, porque é que os lucros obscenos que a banca proclamou no início deste ano, relativamente ao 2023, passaram debaixo do radar, mas os atrevidos dos ambientalistas, que andam aí a vender créditos de carbono e a apregoar o fim do mundo, deviam ter vergonha na cara.
Como é que os baylouts sucessivos à banca – a nível mundial – são aceites com um encolher de ombros, mas a minoria irrisória que anda a tentar montar um sistema independente e rastreável é que tem feito o papel de má da fita.
O documentário ‘Who killed the electric car?’ dá-nos um cheirinho da resposta e, pasme-se, quem tem muito a perder com o status quo normalmente investe fortunas colossais na manutenção do dito. Antigamente isso fazia-se através de reportagens e artigos encomendados, dentro de um pacote genericamente conhecido como lobbying. Hoje em dia basta contratar uns exércitos de bots que, em caves espalhadas por esse mundo fora, minam as opiniões do mainstream com estas ideias peregrinas de que os salvadores do planeta são uns belos sacanas e que só andam a tentar enriquecer à pala do aquecimento global.
Certo. Porque enriquecer à pala de atestar a atmosfera de carbono, metano e outros que tais foi uma acção benemérita para o planeta e que não encheu os bolsos de ninguém. Tentar salvar as gerações vindouras do destino trágico que se avizinha é que tem de ser algo estritamente pro-bono e ai de quem quiser ganhar uns trocos com o processo de salvamento de uma espécie.