www.sabado.ptEurico Reis - 11 fev. 10:17

Áreas Libertadas

Áreas Libertadas

Opinião de Eurico Reis

Tenho escrito muito, e não desistirei de o fazer até que essa mudança se concretize, acerca da imperiosa necessidade de as Esquerdas mudarem o seu comportamento e o seu discurso acerca de vários dos problemas que afligem os portugueses e as portuguesas.

E tal acontece, embora seja também por essa razão, não apenas por causa do crescimento do número de votantes no Chega.

Nunca tive ilusões acerca do facto de o pensamento reaccionário, machista, xenófobo e racista - numa palavra, fascista – ter sempre continuado bem vivo em Portugal, nomeadamente porque, nestes quase 50 anos que passaram após o golpe militar de 25 de abril de 1974, essa maneira de ver/conceber o Mundo e a Vida nunca foi devidamente combatida.

Tudo começou com a ideia absurda lançada pelo PCP através do slogan "as conquistas irreversíveis de Abril", como se as construções civilizacionais/ideológicas criadas pelos seres humanos fossem alguma vez, em si mesmas, irreversíveis. O total irrealismo dessa afirmação/pretensão foi, bem mais do que uma vez, completamente demonstrado pela História da Humanidade.

Nada na Natureza e na Vida é imutável. Nada, nem sequer algo tão definitivo como a morte. Como nos ensinou Antoine-Laurent de Lavoisier, o notável físico francês que nasceu em 26 de agosto de 1743 e morreu em 8 de maio de 1794, nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma.

Em suma, nada é irreversível e muito menos perene, especialmente as frágeis construções culturais humanas que - e tudo começa aí - não são naturais aos seres humanos.

Efectivamente, como já abundantemente referi e aqui repito, os seres humanos - todos os seres humanos, acentuo - nascem selvagens, egoístas, preconceituosos e irracionais. O mito de Jean Jacques Rousseau acerca do "bom selvagem" é, indesmentivelmente, uma grosseira e perigosa mistificação.

Em todas as ocasiões, quando confrontados com a possibilidade de agir de uma certa maneira, todos e todas perguntam, nem que seja apenas a si próprios e em silêncio, o que é que eu ganho, ou posso vir a ganhar, com isso?

Acontece, porém, que é possível fazer com que as pessoas aprendam que, se forem um pouco menos selvagens, egoístas, preconceituosos e irracionais, e começarem a participar em plataformas cooperativas com outros, irão ganhar muito com isso, e essa aprendizagem permitiu que a Humanidade tenha alcançado elevados patamares civilizacionais, com extraordinários ganhos de natureza cultural e de bem estar [Seja-me permitida uma pequena nota: é um erro pensar que podemos ensinar os outros; os bons professores/educadores são aqueles que, usando meios cativantes e apelativos, mostram que existem vários caminhos para encontrar as soluções para os nossos anseios e problemas, e que dão informação esclarecedora acerca do que outros antes de nós fizeram e pensaram, tudo isto para que nós - cada um e cada uma de nós - aprenda, por si próprio/a, que a vida pode realmente ser melhor.].

Contudo, o que nunca poderemos ignorar é aquela base de partida: o que é que eu ganho, ou posso vir a ganhar, com isso?

E isso é algo que as pessoas das Esquerdas (que não apenas os políticos) ou ignoram ou se recusam a aceitar.

E porque assim é, e esquecendo que toda a economia é economia política, algumas dessas pessoas, embaladas no slogan (ele próprio também uma mistificação) que afirma que os portugueses - todos sem excepção - vivem acima das suas possibilidades, ou porventura tendo aderido a esse postulado ideológico cuja consonância com a realidade nunca chegou a ser feita, a pretexto de uma entronização absolutista do dito "princípio das contas certas", colaboraram com a destruição de serviços públicos fundamentais nas áreas da educação, da saúde, da justiça e da administração do território; afinal, há muito mais gente a querer ir além da troika do que aquela que, à partida, queríamos que existisse.

Só que a perda desses benefícios sociais teve efeitos muito graves.

De que nos serve a Democracia se eu, mesmo trabalhando, não consigo pagar o preço que me é exigido (pelo deus Mercado) para custear necessidades? Esse é o pensamento de quem não está a ver quais são os seus ganhos pessoais que decorrem do seu apoio a essa específica forma de organização da Sociedade.

E, pese embora essa actuação didáctica não seja muito frequente nos vários meios de comunicação (de facto, é quase inexistente), mostrar como vivem as pessoas nos países onde a Democracia e o Estado de Direito não existem, não se tem mostrado suficiente – quem sabe se porque, de acordo com a sabedoria popular, com o mal dos outros ….

E isso é algo que tem de mudar, isto é, é indispensável tornar bem claros, de uma forma sistemática, persistente e facilmente perceptível, os custos económicos e sociais da falta de Democracia e da inexistência do Estado de Direito.

Só que essa paulatina destruição do Estado Social – como é sabido, eu prefiro usar a expressão Estado Social de Direito – não é o pior que tem estado a ser feito.

Na verdade, a incompreensão sobre os aspectos estruturantes da natureza humana tem levado as Esquerdas – desta vez todas elas – a desvalorizar uma série de questões sociais da maior importância, sendo a mais relevante delas o problema da segurança interna em geral - e já agora, também o da defesa nacional (segurança externa) do País - e a percepção de insegurança em particular.

E a circunstância de, com intuitos claramente políticos de pendor indesmentivelmente anti-democrático, esse sentimento estar a ser exacerbado desproporcionadamente, não serve para ocultar que existem reais factores de insegurança que perturbam os membros da Sociedade e que afectam em especial alguns sectores específicos da nossa Comunidade.

E, perante essa incapacidade de gerar um pensamento de esquerda acerca das questões da segurança interna e da segurança externa do País, esse vazio foi totalmente ocupado pela chamada Direita radical nacionalista e antidemocrática. Ou seja, pelos totalitários, reaccionários, xenófobos e racistas.

E essa ocupação não aconteceu apenas no campo ideológico, mas também – e com consequências bem mais perigosas sob o ponto de vista político, social e cultural – no âmbito das organizações sindicais e profissionais dos agentes policiais e das forças militarizadas.

Deixando o problema da Defesa Nacional para uma outra oportunidade, quero referir-me às questões de segurança interna do País.

A esse propósito, é indispensável assinalar que as várias Esquerdas têm, e isso é indesmentível, uma relação muito má, mas muito má mesma, com o exercício da Autoridade (assim mesmo, com letra maiúscula). Ou, quem sabe, não conseguem perceber totalmente o que significa afirmar que o exercício da Autoridade é um pilar fundamental do normal funcionamento do Estado de Direito.

A expressão que serve de título a este escrito (Áreas Libertadas) era usada - em alternativa a uma outra, a saber, "Zonas Libertadas" - nos tempos da Guerra Colonial pelos Movimentos de Libertação das então Colónias, também designadas "Províncias Ultramarinas", para identificar as partes dos territórios desses hoje países independentes sobre as quais as autoridades portuguesas não tinham qualquer controle efectivo.

Nos tempos em que exerci funções como Juiz de Instrução, o que aconteceu no início da minha carreira e em conformidade com o disposto no Código de Processo Penal de 1929, que atribuía a direcção das investigações não ao Ministério Público, mas sim ao Juiz de Instrução, utilizei esse termo para combater as "resistências" das forças policiais e da GNR a intervir, quer durante todo o dia quer a certas horas da noite, em certas áreas territoriais em que os delinquentes – normalmente enquadrados em organizações criminosas – mandavam e desmandavam, com ostensivo e despudorado desinteresse pelo cumprimento da Lei.

Ora acontece que a Autoridade do Estado de Direito existe para proteger aqueles que cumprem a Lei e os contratos/pactos que celebram dos desmandos e das prepotências daqueles que violam a primeira e incumprem os segundos. Em suma, em Democracia e sob a égide do Estado de Direito é inadmissível a existência de áreas ou zonas libertadas nas quais a Autoridade do Estado não é plenamente exercida.

Mas porque assim é, os cidadãos e cidadãs que integram essas forças policiais e militarizadas têm de ser especialmente cuidados e respeitados. A função que exercem é indispensável ao normal funcionamento do Estado e à preservação da paz social e da tranquilidade pública.

E é também por isso que é intolerável que os agentes policiais sejam insultados, vexados e agredidos quando comparecem em certos locais do território nacional para cumprir as suas funções institucionais e sociais. Não é só na PSP, na GNR e na PJ (ou nos vários Serviços de Informações) que existem racistas e preconceituosos.

Ora a verdade é que os poderes públicos não respeitam devidamente esses seres humanos nem a enorme importância e a dignidade da função que desempenham, nem deles cuidam com a devida atenção. De certa forma, também neste caso, os partidos de esquerda e os governos que formaram, deixaram que a extrema-direita fascista, xenófoba e racista ocupasse essa área ou zona libertada da qual a Democracia e o Estado de Direito andam arredados.

E, para piorar as coisas, surge a decisão da Senhora Ministra da Justiça, com culpa do Senhor Primeiro-Ministro porque este não podia ignorar que esse acto ia ser praticado, de atribuir um subsídio dito de risco aos agentes da Polícia Judiciária e do SIS, sem que no Ministério da Administração Interna fosse tomada uma igual medida, medida essa que constitui uma profunda e bem patente injustiça e, sendo muito brando com as palavras, consubstancia uma inegável e imperdoável inconsciência crassa.

Esta é uma daquelas decisões que deixa uma marca profunda no currículo de quem a toma. E não é de todo uma marca positiva.

Não alheia a motivações de natureza política anti-democrática, está a dimensão alcançada pelo protesto contra essa medida. E essa contaminação por parte das forças ditas nacionalistas (e realmente reaccionárias, xenófobas e racistas - numa palavra, fascista), que, efectivamente faz perigar a Democracia e o Estado de Direito, será, a prazo, profundamente prejudicial para aqueles que foram vítimas daquela indisfarçável injustiça praticada pelo Governo.

Mas, não obstante, tudo isto constitui uma outra manifestação dessa incapacidade de todas as Esquerdas em construir um pensamento acerca do exercício da Autoridade do Estado de Direito Democrático.

É que há formas e formas de exercer a Autoridade e só algumas delas – bem poucas – são democráticas e dão corpo ao pleno e integral cumprimento das exigências de um Estado de Direito digno desse nome.

Estão, portanto, em causa os critérios de recrutamento dos agentes de autoridade e a qualidade da formação que lhes é ministrada.

A Democracia não é inata e o mesmo acontece com a compreensão de como deve ser exercida a Autoridade num Estado de Direito.

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