www.publico.ptpublico@publico.pt - 11 fev. 07:19

Filhos da liberdade

Filhos da liberdade

Não é preciso um grande esforço para perceber que os arautos da seriedade e anticorrupção têm os mesmos telhados de vidro de todos os outros.

Nasci depois do 25 de Abril de 1974. Foi nem um ano depois e gosto de dizer que fui concebida no 1.º Maio desse ano (as datas batem certo) e que esse facto me deixou colada à existência uns traços de personalidade a que alguns podem chamar teimosia e outros reivindicação. Vivo muito bem com eles.

Sou uma filha desse momento primeiro de liberdade e democracia que chegou ao país há 50 anos e que agora, perante os nossos olhos, e em tantos aspectos, nos aparece como ameaçado. Haverá muitas razões para isso, incluindo um descontentamento crescente com a possibilidade de sermos tudo o que sonhámos e que nos leva a criar uma espécie de visão de túnel que nos faz crer que está tudo pior do que há uns anos. Não está. Em 50 anos evoluímos tanto em questões de acesso à saúde e à educação, ao bem-estar e à possibilidade de sermos livremente o que somos, nas nossas opções políticas, religiosas ou sexuais, que em alguns casos é até difícil estabelecer algum ponto de comparação.

Mas eu percebo que quando não conseguimos ter salários dignos, sair de casa para iniciar uma nova vida independente ou vivermos anos sem um médico de família seja difícil ver o tanto que melhorámos. É mais fácil gritar que isto está tudo mal, que o país está pior, que vamos todos morrer à porta do Serviço Nacional de Saúde (que está frágil e a precisar de muitas mudanças, mas que ainda funciona tão bem, tão bem em tantos aspectos). E, já agora, porque esta narrativa precisa sempre de um culpado, que a culpa é dos imigrantes.

Haverá muitas razões para termos chegado aqui e não é fácil descobrir o segredo que se esconde por trás dessa cultura da gritaria e do ódio assente em mentiras, que parece ter transformado qualquer discussão construtiva sobre o país numa batalha digna de um estádio de futebol. Mas para quem, todos os dias, faz um esforço para descodificar a nossa realidade, se debruça sobre os mais diferentes estudos que nos mostram como somos, há alguns aspectos que surgem como contributos evidentes para a realidade em que nos encontramos e em que o partido que mais cresce a olhos vistos é o que só sabe falar aos gritos e põe em causa direitos civilizacionais conseguidos com muita luta, pelas mulheres e a comunidade LGBT+.

Que os jovens apareçam como o principal motor deste crescimento é frustrante. São estas as ideias da geração mais qualificada de sempre? Para alguns, certamente. Mas sabemos do impacto das redes sociais e da cultura que aí é propagada, do soundbite e do insulto fácil a qualquer opinião com a qual não concordamos, sem que sejamos forçados a parar para pensar e a ouvir os argumentos do outro. Só que se esta é a geração mais qualificada de sempre, ela tem obrigação de saber isto e de perceber onde se encontra a informação mais correcta.

Os jovens estão fartos e isto é um voto de protesto? Não é suficiente. Há muito por onde escolher no sistema político português e não é preciso um grande esforço para perceber que os arautos da seriedade e anticorrupção têm os mesmos telhados de vidro de todos os outros. E quando ouço falar no voto de protesto, lembro-me sempre do ar atarantado dos britânicos que votaram a favor do “Brexit”, convencidos de que o sim à saída da União Europeia nunca iria vencer e que pediam, nos dias seguintes, se não era possível repetir o referendo.

Acredito que há mais um factor a ter em conta e volto ao 25 de Abril. Estamos perante novas gerações que nunca viveram em ditadura e já nasceram longe dela. Para quem o SNS, a escola pública, o direito das mulheres a votar ou a viajar sem precisar da autorização do marido são dados como adquiridos. E que acham, por isso, que nada disto será alguma vez posto em causa. Ou, talvez, que a alternativa nem será assim tão má. Não podemos desistir de lhes explicar que é mesmo assim tão má. E esperar que nunca tenham de o comprovar.

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