Observador - 11 fev. 00:13
Que serviços de urgência queremos no SNS?
Que serviços de urgência queremos no SNS?
Ao condicionar o acesso aos serviços de urgência o governo vai gerar iniquidade, e aumentar os riscos de agravamento de problemas de saúde, e até o risco de vida.
O serviço de urgência hospitalar é uma porta de entrada no sistema de saúde que em Portugal representa cerca de 6 milhões de atendimento por ano, um número que se tem mantido mais ou menos constante ao longo do tempo.
Neste início de ano, o Ministério da Saúde pretende redefinir a forma como os estabelecimentos e serviços prestadores de cuidados de saúde do SNS desenvolvem respostas de proximidade às necessidades assistenciais em situação de urgência. É uma proposta de diploma que foca os serviços de urgência dos hospitais do ponto de vista dos próprios serviços de urgência, deixando de parte os serviços de saúde a montante e a jusante e a perspetiva dos cidadãos. Ora as urgências não são desarticuláveis do restante SNS e ao fazê-lo, o diploma condena-se a si próprio na sua aplicabilidade.
Importa perceber que nos serviços de urgência não caem apenas situações de urgência. Existe doença aguda, existe doença crónica agudizada, existe compensação assistencial por falta de reposta a outros níveis ou por comodidade de profissionais e utentes, existe cobertura assistencial contínua e existe uma resposta universal e global às necessidades pontuais de saúde dos cidadãos.
Trata-se, portanto, de uma interface entre níveis de cuidados, envolvendo Centro «s de Saúde, hospitais, rede de cuidados continuados e a população, que não pode ser reduzida à questão do acesso aos cuidados de saúde hospitalares do SNS, como parece transparecer.
São conhecidos os erros de encaminhamento da linha SNS24, que deveriam implicar uma auditoria técnica rigorosa e transparente antes de apostar que todos passem a estar em fila de espera não no balcão de atendimento, mas para um telefonema que, como sabemos, frequentemente demora, quando algoritmos bem construídos seriam facilmente digitalizáveis no conforto de um smartphone ou do computador.
Depois aposta-se no sistema de triagem de Manchester. Este sistema não é um instrumento de orientação clínica, mas uma ferramenta para atribuição da prioridade de atendimento, permitindo uma discriminação positiva em função de determinados parâmetros predefinidos. A sua utilização como forma de negar aos doentes o atendimento num serviço de urgência é abusiva e carece de uma base de evidência científica.
O enquadramento deste diploma parece orientar-se para o desvio das admissões aos SU’s para os centros de saúde, deixando de fora todas as restantes situações que não envolvem diretamente os centros de saúde. Na solução, empurram-se os doentes para os ACeS, que são estruturas administrativas sem atividade assistencial própria, sem enquadrar os estabelecimentos prestadores, os horários de cobertura assistencial e a capacidade de resposta a situações não programadas.
A proposta do Ministério da Saúde é omissa em relação à necessidade de reforço de recursos físicos e humanos nos centros de saúde e a forma de o concretizar. Não percebe que nos dias de maior afluência aos SU também se verifica uma enorme afluência nos centros de saúde. Não percebe que um quadro de pessoal calculado para um atendimento médico anual não consegue dar resposta nos meses de inverno. Não define uma política de gestão da doença crónica complexa. Não cria respostas para a doença crónica agudizada em hospitais de dia e serviços abertos. Não altera a resposta da rede de referenciação hospitalar com deficiências por demais conhecidas nos adiamentos constantes de primeiras consultas hospitalares e altas da consulta para o doente ter de ser novamente referenciado pelo mesmo motivo algum tempo depois. Não existe uma aposta na digitalização inteligente dos serviços de saúde com novas interfaces verdadeiramente resolutivas. Não há uma política para educação para a saúde e para a utilização dos serviços.
Trata-se, portanto, de uma proposta incompleta para o objetivo que pretende atingir e que nada resolve de concreto. Ao condicionar o acesso aos SU vai gerar iniquidade e uma sensação de injustiça face a quem tem poder económico para resolver nos serviços privados as suas necessidades percebidas de cuidados de saúde. Ainda pior: pode criar situações de risco de agravamento do estado de saúde e inclusivamente risco de vida para os cidadãos utilizadores do SNS.