expresso.ptProfessor Catedrático Jubilado da Universidade do Porto) - 10 fev. 10:04

O mistério do quadro de Domingos Sequeira: um funesto episódio

O mistério do quadro de Domingos Sequeira: um funesto episódio

O episódio da “Descida da Cruz”, tal como aparece contado, lembra os enredos de Agatha Christie com os protagonistas a lançar suspeitas uns sobre os outros sem se entender a raiz do problema ou se encontrar um verdadeiro culpado.

Venho defendendo desde há duas décadas a necessidade de criar em Portugal um Conselho para as Artes constituído por independentes com provas dadas que, em proximidade da tutela e das diversas instituições e agentes, elabore e agencie medidas que ajudem a pensar novos modelos para a Cultura e as instituições num tempo de mudança como o nosso.

Lembrei-me outra vez disso ao ler na imprensa portuguesa (e em alguma internacional) dados esclarecedores de um novo e funesto episódio ligado à venda de uma importantíssima obra de Domingos António de Sequeira pertencente à Família Palmela, que seria cómico se não fosse grave já que, a um mês de novas eleições, afecta directamente o Ministério da Cultura — tendo o Ministro assumido a responsabilidade dos Serviços que tutela — e uma série de outras instituições, mas que sobretudo produz uma confrangedora imagem externa evocada pela imprensa internacional, nomeadamente no “The Times” que assinala incongruências que em nada ajudam ao nosso prestígio internacional. De facto o episódio tal como aparece contado lembra os enredos de Agatha Christie com os protagonistas a lançar suspeitas uns sobre os outros sem se entender a raiz do problema ou se encontrar um verdadeiro culpado.

No essencial o que se sabe é que um ramo dos Souza Holstein decidiu vender uma das quatro grandes obras religiosas vindas da mão de Sequeira, uma extraordinária “Descida da Cruz” pertencente ao mesmo ciclo daquela outra obra adquirida há uns anos por subscrição pública para oferta ao MNAA ("A Adoração dos Magos"), acto cívico que reforçou uma presença da maior importância. Do ciclo restavam três em mãos de privados entre as quais a que agora se vende em Madrid.

Era o que faltava que num regime democrático os coleccionadores não pudessem dispor das obras para as vender, oferecer ou trocar quando entenderem mesmo se, em certos casos, devem imperar critérios avisados que salvaguardem a saída do País sem tomar os devidos cuidados, como seja o caso do interesse de algum grande Museu internacional, o que agora aconteceu.

Interditar a venda no mercado internacional não apenas seria anti-democrático como desdenharia do valor que este pode atribuir à arte portuguesa salvando-a enfim do miserabilismo local, erro grave e sem justificação que, no silêncio geral, torna a arte refém de nacionalismos centralistas e serôdios.

A trama neste caso — como nos romances que Poirot desvenda — decorre em sucessivos momentos que cabe analisar lembrando o papel relativo das personagens envolvidas. A primeira a aparecer em cena é o Director da DGPC, Arquitecto João Carlos Santos, tornado “bode expiatório” que, porventura por não dispor de grandes meios materiais nem do inestimável aconselhamento que um Conselho para as Artes poderia oferecer, não viu razões para impedir a saída e venda internacional, mesmo se agiu de boa fé, como decerto aconteceu, o que até poderia abrir a porta à aquisição por uma instituição de referência.

Por seu turno sabemos agora (mas porquê só agora?) que Joaquim Caetano, Director do MNAA, deu um parecer desfavorável à saída da obra, recomendando a aquisição para o Museu. Mas porque não foi ouvida de um modo nítido esta opinião referencial e tudo aconteceu apesar dela? E porque não veio ele em tempo a público pedir uma intervenção estatal diante do manifesto interesse da obra? Esta discrição excessiva por parte dos responsáveis culturais diante da sua responsabilidade de intervir no chamado espaço público, prossegue uma prática recorrente de sotto voce que em nada tem ajudado a fomentar maior literacia cultural dos portugueses (e já houve mesmo vítimas disso apenas por terem ousado contrariar a voz do dono, que o diga Paulo Henriques entre outros).

Aqui entra o papel de outra personagem, Raquel H. da Silva, antiga Presidente do Instituto dos Museus que, em meteórica ascensão que não se compreende, deixou os museus portugueses em pior estado do que estavam, presos do referido centralismo burocrático. Mas que agora, na melhor tradição do conselheiro Acácio, a cada novo episódio que respeite à arte ou às instituições, tanto diz uma coisa como pouco depois o seu contrário, beneficiando sempre, graças a isso, de pelo menos metade da razão.

Não há novela em que não apareça feita protagonista: foi o caso ainda há pouco do “Cristo Kwerata RESU” — cuja propriedade levanta fundadas dúvidas de legalidade, noticiadas pelo “Expresso” com chamada à capa da Revista — que em tempos ela classificou mas que mais tarde se esqueceu de ter visto. E agora de novo no “caso Sequeira” veio ela defender num momento a saída para o mercado internacional e uma semana depois a compra para as colecções públicas, quando a obra já está a ser apregoada por três vezes mais do que a anterior ("A Adoração dos Reis Magos") quando foi comprada para o MNAA.

Uma simples estratégia no sentido de garantir que obras de tal importância só poderão vender-se internamente ou sair do País excepcionalmente se e quando destinadas a Museus importantes, teria sido o suficiente para evitar a barafunda

Entram depois os habituais “abaixo-assinantes”, o típico concílio de sábios que jamais falta em tais enredos que, parecendo surpreendidos qual o coro na tragédia grega, depois do mal estar feito se ocupam com vaticinar actos de bravura a outrance, neste caso o imperativo da aquisição imediata de todo o ciclo, mesmo se a preço proibitivo, o que custaria aos portugueses uns quantos milhões. Assim mesmo, valha-nos isso, o valor de Sequeira ficou, graças ao episódio, comprovado pelo mercado internacional assim a obra saiu de casa para Madrid.

Ou seja, ninguém tem culpa no alegado “crime” — que é a tão só a legítima venda fora do País — mas todos tomaram nele alguma parte: ao ignorar as ocorrências em devido tempo, ao falhar fazer leis que agilizem os procedimentos, ao silenciar o que devia ser publicamente declarado e, sobretudo, ao criar agora uma falsa e inútil polémica para sacudir responsabilidades, o que já está a ter efeitos perversos.

Alguns dos mais importantes museus internacionais que haviam manifestado interesse na aquisição — o que traria enormes benefícios a Portugal e à visibilidade da sua arte fazendo subir os valores de um grande artista e integrando-o na Europa, coisa que jamais soubemos fazer — já recuam face ao receio de acidentes diplomáticos, como se depreende da imprensa estrangeira e a obra arrisca-se, com tão má publicidade, a acabar nas mãos de algum oligarca sem vantagens para ninguém.

Uma simples estratégia no sentido de garantir que obras de tal importância só poderão vender-se internamente ou sair do País excepcionalmente se e quando destinadas a Museus importantes, teria sido o suficiente para evitar a barafunda. Talvez a recém-criada Empresa Museus e Monumentos de Portugal — legado positivo que o Ministro entregou a Pedro Sobrado, o competente Director — possa no futuro evitar desmandos semelhantes onde, quando já é tarde, são sempre mais as vozes do que as nozes.

NewsItem [
pubDate=2024-02-10 11:04:41.026
, url=https://expresso.pt/opiniao/2024-02-10-O-misterio-do-quadro-de-Domingos-Sequeira-um-funesto-episodio-5d841f53
, host=expresso.pt
, wordCount=1125
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_02_10_706849449_o-misterio-do-quadro-de-domingos-sequeira-um-funesto-episodio
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]