expresso.ptIsabel Galriça Neto e Miguel Soares de Oliveira* - 20 nov. 13:04

Plano de contingência para o colapso da rede de Urgências: erros e sugestões

Plano de contingência para o colapso da rede de Urgências: erros e sugestões

Perante o caos instalado na rede de serviços de urgência do SNS, muito resultante do descontentamento dos profissionais de saúde com as políticas de saúde, que os ignoraram ou “espremeram”, impõe-se, infelizmente, um plano de contingência. Mas não necessita de ser um mau plano. Nem impede que se procurem implementar, rapidamente, as soluções definitivas que se impõem

Quando temos no palco mediático o quadro da grave crise politica em que a degradação socialista nos colocou, impõe-se não camuflar ou ignorar o caos no que aos serviços públicos diz respeito, pois são milhares os portugueses gravemente afetados no acesso aos cuidados de saúde. O mês de novembro vai a mais de meio, e todos os dias mais serviços vão encerrando.

Foi recentemente divulgado o Plano de Reorganização da Rede dos Serviços de Urgência (SU) do Serviço Nacional de Saúde (SNS), da autoria da Direção-executiva do SNS. Trata-se, na verdade, esperemos, não de um plano de reorganização, no seu sentido definitivo, ponderado e estratégico, mas sim de um plano de contingência, dado o caos instalado.

Esta é, portanto, a primeira sugestão: assumir que se trata de uma solução de emergência, de recurso e, por conseguinte, uma solução não ótima ou mesmo, uma má solução. Até porque a rede assim redesenhada, de forma quase inorgânica (como afirmou alguém, “uma escultura sem escultor”), não responde cabalmente às necessidades da população, nem em termos de acesso, nem dá as garantias de qualidade e de segurança que se impõe.

Portanto, deverá ser limitada no tempo e no contexto. Repare-se que assumir que este planeamento de catástrofe é, ou possa ser, o “tubo de ensaio” para eventuais reformas que por aí viriam, seria desastroso. Não só pelas perdas imediatas de acesso, segurança e qualidade, referidos, mas principalmente porque o encerramento definitivo de determinadas especialidades de urgência em alguns pontos da atual rede de SU seria, inevitavelmente, reduzir ou destruir a idoneidade formativa de especialistas médicos nesses serviços, com consequente redução da sua atratividade que, no médio e longo prazo, ditariam o encerramento desses serviços, com redução do acesso, ou diminuição da sua capacidade e qualidade.

Esta solução só poderá ser aceite como “um triste remedeio” para toda a lamentável situação gerada, por ações ou omissões, que apenas a este Governo e a este Ministério poderão ser imputadas. Sugere-se, veementemente, a implementação de políticas que permitam serenar as angústias e exigências dos profissionais de saúde, para que tudo volte ao normal, tão breve quanto possível.

A atual crise permitiu ainda verificar que são os hospitais dos grandes centros urbanos que, em situação de caos, conseguem, com enorme esforço, “aguentar” o SNS. Se esse fato merece atenção, para que nunca se perca, não menos verdade é que se impõe um olhar especial para os hospitais mais pequenos, mais afastados dos grandes centros, que servem populações com menos opções de acesso, e que, sendo os “elos mais fracos” do sistema, foram, exatamente, por onde a cadeia quebrou, para os fortalecer de forma duradoura e irreversível.

Sugere-se, consequentemente, a implementação de políticas que discriminem, positivamente, estes hospitais, criando incentivos, de diversas naturezas, à sua capacitação técnica, de infraestruturas, de liderança e, principalmente, de recursos humanos.

Das soluções genéricas apresentadas no plano, algumas merecem uma análise mais detalhada:

  1. “Os cuidados de saúde primários devem reorganizar-se e assegurar períodos de atendimento não programado, para doentes com patologia aguda, nomeadamente enviados pelo SNS24”. É do conhecimento geral que há falta de Médicos de Família. Portanto, transferir a pressão para uma rede (de cuidados primários) que está tão ou mais deficitária que a rede de SU não parece uma boa solução. Os Centros de Saúde, sobrecarregados e com escassez de recursos humanos, dificilmente poderão aumentar a resposta para receber doentes urgentes;
  2. Para além disso, ao invés de ter sido criado um atrativo para aumentar as Unidades de Saúde Familiar de tipo B, que tinham associado um sistema de incentivos que permitiria reduzir o número de pessoas sem Médico de Família, foi publicada, recentemente, legislação que tem o efeito oposto. Sugere-se, com caracter imediato, suspender a aplicação desse diploma legal;
  3. “Devem os SU priorizar a receção/admissão/triagem dos doentes transportados em ambulâncias e encaminhados pelos CODU (Centros de Orientação de Doentes Urgentes) do INEM… de forma a libertar rapidamente os meios para resposta a novas ocorrências”. Esta medida, que teria como intenção libertar mais depressa as ambulâncias dos SU, é errada. Primeiro, porque assume que o doente transportado por ambulância é mais grave do que os outros, o que nem sempre é verdade. E ao dar-lhe prioridade (“passam à frente dos outros”) na “admissão” ou na “triagem” está a assumir isso, sem qualquer base científica e com riscos para todos os outros doentes. Segundo, porque se a intenção é “libertar rapidamente os meios”, bastaria aumentar a capacidade de os transferir da maca da ambulância para uma maca do SU e alocar alguém para ficar com os seus dados, realizar a sua admissão administrativa e conduzi-lo à triagem, na sua vez (excecionando-se os casos que já atualmente seguem diretamente para as salas de emergência). Portanto, sugere-se reorganização do processo de admissão desses doentes, com eventual reforço de macas e/ou pessoas para realizarem a sua admissão, mas sem adulterar a lógica de prioridades, que só é, reconhecidamente, eficaz e segura através de um sistema validado de triagem. O reforço do número de postos de trabalho na admissão e na triagem poderão também ser boas alternativas.
  4. “Ao INEM compete a orientação pré-hospitalar dos doentes urgentes/emergentes para o SU mais adequado…”. Estudos internacionais e dados nacionais apontam para uma elevada percentagem (acima de 40%) de doentes transportados pelo INEM para um SU, que nem necessitariam de lá ir. Sugere-se, por conseguinte, uma atualização e reforço do protocolo existente no INEM para “Não transporte a um SU”, com as devidas precauções e segurança, criando circuitos e/ou destinos alternativos, mais adequados à situação clínica dos utentes.

Perante o caos instalado, muito resultante do descontentamento dos profissionais de saúde com as políticas de saúde que os ignoraram ou “espremeram”, impõe-se, infelizmente, um plano de contingência. Mas não necessita de ser um mau plano. Nem impede que se procurem implementar, rapidamente, as soluções definitivas que se impõem.

* grupo programático para a Saúde do CDS-PP

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