expresso.ptJosé Soeiro - 27 set. 14:27

As propostas da CIP sobre salários são um engodo

As propostas da CIP sobre salários são um engodo

O que os patrões querem é um gigantesco benefício fiscal e um mecanismo em que aumentos salariais têm como contrapartida a usurpação do salário indireto dos trabalhadores, por via da suspensão do pagamento das contribuições patronais para a segurança social.

A CIP montou, nas últimas semanas, uma grande operação político-mediática. O afã em torno do “pacto social” foi tanto que não escapou, todavia, ao ridículo. Os patrões, dizia o porta-voz da CIP, querem um aumento salarial superior ao que é proposto pela “mais radical das centrais sindicais”. É caso para perguntar: então porque não o fazem, dado que está nas mãos das empresas concretizar esse aumento?


Na realidade, o que os patrões querem é outra coisa: um gigantesco benefício fiscal e um mecanismo em que aumentos salariais (que os patrões sabem que terão de fazer, até para captar e reter mão-de-obra) têm como contrapartida a usurpação do salário indireto dos trabalhadores, por via da suspensão do pagamento das contribuições patronais para a segurança social.


A CIP anunciou a proposta de um aumento de 14,75% no rendimento mensal dos trabalhadores. Os mais incautos poderiam pensar que, insufladas de uma súbita generosidade, as empresas iriam a correr à negociação coletiva propor esse aumento salarial. Só que não. O aumento no salário, de acordo com esta proposta, seria apenas de 4,75%, e sem pagar impostos nem contribuições para a segurança social. Os restantes 10% seriam destinados a um plano individual de reforma obrigatório, que transferiria uma parte das pensões futuras para a roleta do mercado financeiro.


Num contexto em que terá de haver aumentos - pela inflação, pela dificuldade em encontrar mão-de-obra, porque os trabalhadores mais qualificados emigram - a CIP quer aproveitar para meter pela porta do cavalo, como contrapartida, esse velho sonho da direita e dos mercados financeiros que é abrir a porta do sistema de pensões aos fundos privados, desviando descontos para fora do sistema previdencial e abrindo uma fenda real nas contas da segurança social.


Mas a CIP brandiu ainda outra bandeira: um suposto “15º mês” extra que os trabalhadores poderiam receber. A proposta pode parecer simpática, mas é um engodo para quem trabalha e um grande negócio para os patrões. Não seria um aumento de salário, mas um prémio facultativo. Se dividíssemos pelos 14 meses, seria pouco mais de 6% de aumento, o que não anda longe do que as confederações já tinham assinado com a UGT e o Governo, e num cenário de inflação mais baixa do que a que existiu. Mas o ”15º mês” é também um saque fiscal a favor de quem ganha mais (porque os impostos são progressivos) e a subtração de uma componente fundamental dos rendimentos dos trabalhadores: os pagamentos patronais à segurança social, que garantem a proteção na doença, na parentalidade e a construção de uma pensão de velhice. Criando a ilusão de um aumento de rendimentos no presente, a CIP quer fazer um desfalque na segurança social e comprometer as pensões futuras.


A CIP soma ainda ao plano a proposta de reduzir em 50% a incidência de IRS e de contribuições para a segurança social sobre o trabalho extraordinário e sobre os subsídios de turno. Mais uma ideia perversa. Não precisamos de embaratecer para as empresas o trabalho suplementar e o trabalho por turnos, mas sim de reduzir os horários de trabalho reais e legais, de desincentivar o prolongamento das horas extra, de restringir os turnos às funções que estritamente exijam esse regime.


A cereja no topo do bolo é, contudo, a proposta sobre o IRC. O “Crédito Fiscal para a Competitividade e o Emprego” foi o nome pomposo que a CIP encontrou para um verdadeiro rapinanço fiscal. Sob que forma? Deduzir à matéria coletável do IRC (o imposto sobre os lucros das empresas) todas as despesas com aumentos da massa salarial e com pagamento de dividendos a trabalhadores, que seriam em ambos os casos, além do mais, majoradas em 40%.


Ou seja, num país em que os lucros das empresas já pagam muito menos impostos que os rendimentos do trabalho, a CIP quer diminuir a base sobre a qual se calculam aqueles impostos e quer baixar o IRC para uma taxa única, não progressiva, de 17%, acabando com a distinção entre pequenas e grandes empresas e reduzindo os impostos, justamente, às maiores empresas, que são já as mais capazes dos imaginativos arranjos de planeamento fiscal. Seriam milhões de euros desviados do orçamento do estado para os bolsos dos patrões.


Perante isto, como reagem o Governo e o PS? Com uma enfática abertura. A vontade de levar para o debate orçamental um acordo com a CIP é tanta que os sinais dados, além das trapalhadas com a concertação social, são de cumplicidade e enlevo.


Precisávamos de um governo que defendesse da inflação quem vive do seu salário? De aumentos significativos dos salários reais, que não chegam ao fim do mês e são absorvidos pela renda ou pela prestação da casa? De uma repartição mais justa da riqueza e de maior justiça fiscal? Sim, precisávamos. Por tudo isso, o saque que a CIP propõe deveria ter um rotundo não, em lugar das simpatias e cumplicidades reveladas pelo governo.


Embrulhado numa bela retórica, este “pacto” não é mais do que a agenda de sempre dos velhos privilégios. Que haja então, no país, esquerda, sindicatos e movimento de trabalhadores para derrotar esta operação patronal.

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