expresso.ptJosé Miguel Júdice - 19 set. 21:00

As causa: a arte de mal governar

As causa: a arte de mal governar

Os erros da maioria na habitação, a avaliação do que aconteceu na pandemia e a necessidade de o Presidente colocar travão em Marcelo. As Causas de José Miguel Júdice

Há meses realcei a iliteracia financeira como um dos maiores problemas para o nosso desenvolvimento político, económico e social.

Também há muitos meses que venho dizendo que o principal critério para medir a qualidade de um governo é a sua capacidade de antecipar problemas e com isso fazer avançar soluções quando ainda não são exigidas pela sociedade e/ou quando ainda se não entrou em situações de pânico.

Também repetidas vezes referi que as políticas públicas não podem ir a reboque da opinião organizada, dominante ou mais vocal, antes devem ponderar todos os fatores sempre com a preocupação de evitar distorções e a implementação de medidas rápidas e fáceis, mas com efeitos que podem demorar décadas a ser corrigidas.

Hoje vamos falar de várias situações, todas elas relacionadas com o que acabo de resumir.

HABITAÇÃO DE ESTUDANTES: 8 ANOS PERDIDOS

Veja-se então a questão da falta de habitação para estudantes e professores nos grandes centros urbanos.

O inenarrável Ministro da Educação culpou na televisão os senhorios, por serem especuladores e subirem os preços das rendas. E, sabe-se lá porquê, depois de os atacar apelou para o bom senso deles.

Com isto atira intencionalmente pela janela a lei da oferta e da procura e a lógica de uma sociedade liberal: pensar que havendo muita procura e pouca oferta os preços não sobem é falta de literacia ou excesso de má fé.

Ora o Governo anda a pastorear-nos e aos media (e tantos de nós gostamos…) há 8 anos.

É por isso extraordinário que não antecipasse a evolução do mercado do arrendamento e da construção e que praticamente nada tivesse feito do lado da oferta.

Assumindo que arrendamento barato para estudantes e professores em Lisboa, Porto e Algarve é uma política pública prioritária, e não discordo, isso não nasceu ontem, pelo que não se percebe que não tivesse lançado em 2016 um programa de construções em terrenos ou imóveis públicos que em 5 anos estaria no terreno com edificações para arrendar.

Finalmente, para poder agir agora a correr vai evidentemente retirar rendimento aos senhorios, depois de os atar ao pelourinho para insultos e outras “mortaguices”, favorecendo quem fala mais alto ou está mais organizado.

Tabelar rendas em clima de inflação, forçar a arrendar em clima de desconfiança, construir à pressa em tempos de carestia de mão de obra e de excesso de trabalho para as pequenas e médias empresas de construção, vai distorcer os mercados, com nefastos efeitos para décadas.

Realmente, entrará menos capital no setor de construção para arrendamento, os senhorios vão usar todos os pretextos para não arrendar, os preços da construção vão subir e com isso aumentar os custos dos investimentos (incluindo manutenção de edifícios) e reduzir a sua rentabilidade.

E OS SENHORIOS POBRES E OS INQUILINOS RICOS?

Vejamos agora o exemplo das medidas para evitar que as rendas subam 6,94% no próximo ano, pois a elas se aplica mutatis mutandis o raciocínio anterior.

A inflação aumenta as rendas para inquilinos ricos e pobres e tabelá-las abaixo da inflação retira rendimento de modo injusto e expropriatório a senhorios pobres e ricos.

E os efeitos da inflação afligem também os que vivem com as famílias, ou em casa própria ou que foram apoiados pela família, ou sobretudo os que investiram com empréstimos bancários.

Se o Estado acha que deve haver uma política pública para proteger os mais desfavorecidos (os que são inquilinos e todos os que estejam em situação equivalente) deve financiar diretamente todos esses.

O que é absurdo é mostrar a chocante iliteracia financeira de pensar que a melhor maneira de ajudar quem precisa é proteger todos os inquilinos, incluindo os mais ricos, à custa dos senhorios, mesmo os mais pobres, e pensar que isso não tem efeitos macroeconómicos no futuro.

E já agora, castigar quem arrenda e não quem empresta, e beneficiar quem não consegue pagar rendas, mas não quem não consegue pagar empréstimos.

E, de novo, o caráter cíclico da economia tornava inevitável que chegasse a inflação, o PS está no governo há 8 anos, e poderia ter lançado políticas públicas ativas de construção – na altura até para aguentar empresas de construção e contrariar a emigração ou o desemprego de trabalhadores do setor - desse modo aumentando a oferta que teria como resultado reduzir a carestia e com isso limitar a subida das rendas.

A gravidade desta incompetência tem muitos exemplos. Recordo apenas um que, na passada semana, Joana Petiz revelou no “Novo”: em 2016 o Governo criou o “Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado” (FNRE) para integrar e reabilitar prédios devolutos do Estado, um “megainvestimento público de 1.400 milhões de euros, financiados pelo Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social”, todos os anos reforçado com 70 milhões de euros.

Em 2018 o Governo revelou que o FNRE tinha localizado 780 imóveis, dos quais 170 “potencialmente viáveis” e, com as habituais parangonas com que nos enganam e nos deixamos enganar, em 2019 Pedro Nuno Santos apresentou o projeto e anunciou o alojamento de 7.500 famílias. Passados mais de 5 anos, “não há uma obra feita”.

No mesmo sentido o Bastonário dos Engenheiros não podia ser mais claro: Existem, com propriedade do Estado, “localizações nas grandes cidades que permitem resolver rapidamente” o problema da falta de habitação em Portugal. Ou seja, o Governo de António Costa perdeu 8 anos e agora – algo em desespero - dedica-se a procurar bodes expiatórios e a lançar medidas inadequadas e precipitadas.

COSTA PEDE TEMPO 8 ANOS DEPOIS

Ainda na área da Educação, João Costa afirmou há dias que o Governo pede “tempo”, pois afirma que “muitas das questões levantadas pelos profissionais da educação são problemas herdados” e que “o que estamos a fazer, e isso não se faz sem dores, é agir perante esses problemas muitos antigos. Quando temos uma disfuncionalidade de 20 ou 30 anos, não se resolve de um dia para o outro”.

O que isto mais uma vez revela são os vícios que mencionei no início. O mínimo que se espera de um novo governo é que chegue preparado e ainda mais se nos lembrarmos que desde 2005 até 2023 o PS apenas não governou nos 4 anos da troika.

Ou seja, se os problemas resultam de uma “disfuncionalidade” que vem de meados dos anos 90 (quando aliás governava Guterres e a sua “paixão pela Educação”…), era evidente que um Governo competente no início de 2016 teria começado a resolver esses problemas e não estaria 8 anos mais tarde a pedir aos portugueses “tempo para os resolver”.

Seja como for, esta não foi uma “boa ação” do escuteiro-ministro…

AVALIAR TRAGÉDIA DA GESTÃO COVID

Na mesma ordem de ideias eu diria que o “bom governo” é também aquele que é capaz de aprender com os erros e para isso tem coragem de avaliar de forma independente a sua ação pretérita.

Foi o que sugeriu Adalberto Campos Fernandes (o primeiro Ministro da Saúde de António Costa) em relação à COVID, num evento da Associação de Municípios em Coimbra.

É sabido que – quase isolado – fui muito crítico da gestão da COVID feita por Marta Temido e a sua equipa. Nessa altura, uma das críticas que me fazia o poder instalado e muitos que vegetam à volta dele, foi que o tempo das análises, avaliação e críticas seria depois de acabar a pandemia.

A pandemia acabou e, como era evidente, o poder politico-sanitário não fez nem vai fazer o que Campos Fernandes, com a sua autoridade técnica e moral, lhe pede.

E isso é essencial: o ex-Ministro teve a coragem da clareza, ao afirmar que, com exceção da vacinação, “a gestão da pandemia em Portugal foi um desastre”.

Disse mais, que “não devemos negar a realidade, mesmo que sejamos parte ativa dos erros que foram cometidos” e que “falta uma tradição em Portugal de avaliação e de exercício de autocrítica”.

Como é evidente, infelizmente eu tinha razão. Isso agora pouco importa. Mas venha uma avaliação independente, o que deveria ser uma proposta de oposições que vezes demais também não tiveram a coragem de dizer o que era óbvio, o “desastre da gestão da pandemia”.

O ELOGIO

Há dias Patrícia Reis, uma competente jornalista do Público, escreveu na passada semana um texto muito interessante e, tal como estão as coisas, muito corajoso.

O título explica: “Abate de sobreiros em Sines é chocante? Nem por isso”. E o artigo demonstra a precipitação, incompetência, preconceito ou má fé de partidos (PAN e BE, no caso), de associações ambientalistas e corticeiras, de órgãos de comunicação e jornalistas.

Tenho dito que a pior forma de lutar pelo ambiente e pela preservação da paisagem e da memória é a demagogia e o exagero acompanhados pela falta de rigor e de conhecimento e estudo.

Patrícia Reis (e Francisco Ferreira que falou no mesmo sentido) merecem elogio. Só assim se defende a causa do ambiente.

LER É O MELHOR REMÉDIO

Não sei o que têm de comum os dois livros hoje sugeridos, que não seja estar a ler um e a pensar em ler o outro…

Os Últimos Dias de Roger Federer” (Quetzal) é um título que quase me afastou de lhe meter o dente quando percebi que era mesmo a tradução do título original. O nome do autor Geoff Dyer não me era estranho, mas nada lera dele.

Felizmente não desisti e está a ser um livro encantatório, que trata de “finais”, de vida, obras, estilos, navegando por associações e acasos.

O Mar Negro – de Péricles a Putin” (Relógio de Água), de Neal Ascherson, é uma leitura óbvia nesta conjuntura sobre um dos “centros do Mundo”, que esteve no olho do furacão de combates entre impérios por milhares de anos.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA

A Ministra Ana Catarina Mendes, habitualmente menos demagógica, atirou-se como gato a bofe a Cavaco Silva, a pretexto do livro que ele agora publicou, acusando-o de nas décadas de 1980 e 1990 “ter convivido como se nada fosse com o trabalho infantil”.

A Ministra foi desde logo insensata: tudo o que critica quanto a isso e quanto ao abandono escolar a Cavaco se aplicaria também aos governos anteriores, incluindo os do PS liderados por Mário Soares.

Mas, além disso, não fez o trabalho de casa: mão amiga fez-me chegar a Lei 53/88 de 13 de maio, ou seja, aprovada pouco tempo depois de obter a primeira maioria absoluta, que “autoriza o governo a legislar sobre trabalho de menores e incentivos à frequência da escolaridade obrigatória”, de que resultou o DL 286/88 de 12 de agosto, que criou medidas para “desincentivar a utilização do trabalho infantil, através do agravamento do esquema sancionatório vigente”.

A pergunta: Dra Ana Catarina Mendes, já não chega culpar Passos Coelho de todos os flagelos, é preciso recuar a Cavaco Silva? E não teria sido melhor fazer bem o trabalho de casa?

A LOUCURA MANSA

O Presidente da República chamou gorda a uma senhora que estava a sentar-se e foi atraído pelo generoso decote de outra e em ambos os casos usou a ironia que – com enorme sucesso, aliás – sempre usou Marcelo.

Presidente da República em visita oficial ao Canadá. Nuno Veiga / Lusa

Presidente

Marcelo diz que comentário sobre decote foi por causa do frio e "não era sexista de todo"

Leia também

Seguramente que por causa disso não haverá uma crise institucional, Portugal não vai entrar em recessão, nem sequer o Presidente terá o destino de Rubiales.

Mas, como tantas vezes já disse, o Presidente da República comete erros graves por não meter na ordem Marcelo Rebelo de Sousa. Este é mais um exemplo.

Que isto lhe sirva de lição, para que evite o que pode ser evitável, para seu bem e de todos nós os que queremos que ele possa desempenhar bem o seu papel sem se desgastar desnecessariamente.

NewsItem [
pubDate=2023-09-19 22:00:40.0
, url=https://expresso.pt/opiniao/2023-09-19-As-causa-a-arte-de-mal-governar-b68cf794
, host=expresso.pt
, wordCount=1949
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2023_09_19_2145183733_as-causa-a-arte-de-mal-governar
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]