expresso.ptHenrique Burnay - 19 set. 08:54

Carrinhos de linhas portugueses e carros alemães

Carrinhos de linhas portugueses e carros alemães

A alteração da relação com a China tem duas explicações: os políticos europeus estão preocupados com os empregos na indústria automóvel europeia, como não estiveram com os empregos do têxtil português. E temem o papel de Pequim no mundo

Desde o meio da pandemia que a Europa e os Estados Unidos assumiram uma atitude proteccionista e intervencionista. A extraordinária circunstância económica da crise sanitária levou os governos a pagar despesas que garantissem que depois dos confinamentos as fábricas e os negócios eram capazes de retomar a produção e manter os empregos. Pelo menos a maioria.

A economia estava ainda a tentar recuperar da COVID, quando a invasão russa da Ucrânia voltou a colocar tudo em risco. Custos de produção a disparar, preços elevados, juros mais altos.

Uma coisa - a pandemia - e outra - a guerra - são o pretexto próximo para as políticas destes últimos três anos. Mas não são a principal razão. A China, é. Os Estados Unidos e a Europa estão preocupados porque se têm perdido empregos e se tem ganho dependências da China. E já ninguém acha que a China vai ser democratizada pelo comércio e tornar-se num país igual aos outros.

A política industrial europeia e americana, a subsidiação do fabricado nos Estados Unidos ou na Europa, a suspensão das regras da concorrência para apoiar investimentos e promover campeões americanos ou europeus, tem duas razões de ser fundamentais: competição económica e competição geopolítica. Uma, recorda-nos que somos todos iguais na União Europeia mas, como no Triunfo dos Porcos de Orwell, há uns mais iguais que os outros. A outra, recorda que somos mesmo.

No Financial Times desta segunda-feira, Gideon Rachman lembra uma das razões para esta fúria intervencionista e proteccionista: recuperar os votos dos que ficaram, ou acham que ficaram, para trás com a globalização. A eleição de Donald Trump foi o primeiro sinal de que havia um grupo muito significativo de eleitores que sentiam ser os perdedores da economia pós-Guerra Fria: os que viam as fábricas mudarem-se para a China perdiam empregos agora, e expectativas para os seus filhos, no futuro. Foi boa parte deste eleitorado que votou Trump, nos Estados Unidos, que na Alemanha se prepara para votar AfD, e que em França confia cada vez mais em Le Pen. E é a pensar neles que Biden, Macron, Scholz e Von der Leyen se entusiasmam com o modelo intervencionista. Querem trazer as fábricas e os empregos de volta da China para a Europa e a América.

Quando Portugal aderiu à então CEE, teve de abrir o seu mercado aos concorrentes europeus, primeiro, e aos do mundo, depois. Quando isso teve impacto nas fábricas de têxtil e noutras produções menos competitivas, foi-nos explicado que a era o preço a pagar pela nossa ineficiência e pelas vantagens para os consumidores. E era. Mesmo quando a concorrência era desleal. Mas 2023 não é 1993. Agora, a ameaça de fechar fábricas na Alemanha, em França (ou no meio da América) assusta os decisores. Em quem é que estes futuros desempregados vão votar? Como explica Gideon Rachman, e outros, agora acha-se que é preciso proteger esta gente. Como não se achou quando os desempregados eram outros. Daqui a uns anos, quando tiverem carros, telemóveis, energia, roupa ou gadgets eletrónicos mais caros, veremos como se compensam os eleitores que nos últimos anos se habituaram a ter muito e muito barato. Mas isso é daqui a uns anos.

Há outra razão para um movimento de protecção em relação à China: o risco de estarmos a promover economicamente uma potência agressiva e em confronto com os nossos interesses e valores. Mas isso implica ter uma ideia de mundo – a ideia de Ocidente – no centro da política. E para isso é necessário que se acredite que há aqui alguma coisa substancialmente diferente que merece ser preservada e que a ascensão da China ameaça. E aí somos iguais aos desempregados americanos, franceses ou alemães: corremos o mesmo risco. Isso, mais do que os empregos que podem nunca mais voltar, é uma causa.

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