expresso.ptGonçalo Machado Borges - 18 set. 13:55

Concorrência: nada será como dantes

Concorrência: nada será como dantes

O efeito da pandemia e da instabilidade geopolítica mundial obriga a novas soluções de compromisso no processo de globalização

O mundo mudou e vai mudar muito mais. Vivemos tempos fascinantes em que a realidade volta a impor-se ao pensamento mágico que tem moldado as ideias e as políticas nas economias ocidentais.

Ressaltam duas tendências transversais: a crescente dificuldade em ter acesso a energia a preços comportáveis e o encarecimento inexorável do crédito. No pós-2008, e enquanto as taxas de juro estacionaram próximo do zero, o crédito fácil foi um estimulante decisivo para estabilizar a economia global. Já as fontes de energia densas e eficientes (basicamente os combustíveis fósseis), embora ignoradas pela economia clássica entre os fatores de produção primários, têm sido o motor invisível da era industrial. Agora, estão ambos – a energia e o dinheiro baratos – a desaparecer.

A pandemia e a instabilidade geopolítica dos últimos 2 anos vieram também pôr a nu as fragilidades da globalização. As cadeias de abastecimento just-in-time não resistiram a algumas semanas de confinamento. Um modelo assente na máxima eficiência (economias de escala, redução de custos sem fim) mostrou não ter a mínima resiliência. Uma economia mais segura vai exigir redundância, capacidade excedentária, stock em armazém, etc., custos acrescidos que não são exportáveis.

Na Europa, o termo protecionismo já não é um palavrão e os objetivos de política industrial são hoje assumidos frontalmente. O novo leitmotiv em Bruxelas é a soberania europeia – digital, tecnológica e industrial –, assente nos planos plurianuais que a Comissão vem “empilhando” para 2030. Em discurso ao parlamento francês, em junho, o Comissário Breton deixou claro o caminho traçado: “…we have proposed a real revolution: the introduction of manufacturing capacity objectives for 2030. 20% of global market share for semiconductors; 40% of our deployment needs for clean tech; 10% to 40% for raw materials…”.

A esta politização e centralização crescentes somam-se a velocíssima digitalização das sociedades e a Uberização das economias, pondo à prova os limites das tradicionais regras de concorrência. O recente Regulamento dos Mercados Digitais – que impõe múltiplas obrigações ex ante às maiores plataformas – reconhece que o velhinho abuso de posição dominante não chega para disciplinar as Big Tech em tempo útil: a mudança é demasiado rápida, os mercados demasiado complexos.

Nestes tempos de ceteris (im)paribus, o modo de aplicar as regras de concorrência às empresas tem de evoluir. À abertura e flexibilidade dos moldes legais da infração concorrencial o regulador deve corresponder com uma postura menos defensiva, não se abstendo de desenhar com mais nitidez os contornos do que se pode ou não fazer.

Porquê? Porque tal como tem sido aplicado, o direito da concorrência é uma girândola à solta de insegurança jurídica. Há semanas, a Comissão Europeia multou a empresa de biotecnologia Illumina em 432 milhões de euros (!) por ter implementado a aquisição da GRAIL, empresa de investigação em deteção oncológica precoce, sem a notificar previamente. Pequeno detalhe: à luz da lei, a transação não tinha de ser notificada, nem à Comissão nem a autoridades nacionais.

Ao invés de prevenir infrações, esta fixação sancionatória – com o seu corolário obtuso de na dúvida, não faça – arrisca-se a dissuadir investimentos e a tingir de pânico, sem motivo, as decisões de alocação de capital (leia-se: investigação, tecnologia, emprego). Mas a ameaça de coimas milionárias não pode ser a única resposta a dúvidas razoáveis. Tem de haver outras opções.

A Comissão retomou em 2022 o tema da orientação informal às empresas, através de cartas de orientação sobre questões de concorrência novas ou não resolvidas. Embora aquém das antigas cartas de conforto – que têm paralelo nas business review letters que o Departamento de Justiça norte-americano continua a usar – este tipo de orientações pode ser uma forma útil, mesmo a nível nacional, de mitigar incertezas.

Também a negociação de compromissos abre caminho a soluções eficazes. Em Portugal, esta figura está em hibernação (nenhum exemplo desde 2019, em contraciclo com França, Espanha e Itália, onde, em cada caso, se adotaram umas 7-8 decisões desde 2020). Mas nada obriga a que assim seja, ou que se limite a processos de segunda linha: algumas daquelas decisões de arquivamento com compromissos visaram empresas como a Google ou a Meta/Facebook.

Para não falar em poderes de supervisão, que permitem fazer estudos de mercado e adotar recomendações setoriais, sem ter de invocar sequer sanções. Informar e conformar comportamentos, em vez de apenas correr a castigá-los: menos simpático na perspetiva da receita, mas mais adequado à prevenção.

Num mundo incerto, que muda à velocidade da luz, as autoridades de concorrência vão ter que ser – sobretudo – agentes de previsibilidade. Não basta ser polícia, é preciso ser regulador, de olhos postos no futuro. Há um mundo de possibilidades a montante das coimas, mas, para isso, há que dialogar, pondo de parte a desconfiança sistémica que recai sobre as empresas e a relutância em emitir opiniões vinculativas. É preciso, em suma, autoridades ágeis, eficientes e humildes, que sejam um farol de estabilidade em tempos agitados.

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