expresso.ptPedro Gomes Sanches - 5 jun. 07:50

Anomalia da Grei, no dia do Ferris Bueller

Anomalia da Grei, no dia do Ferris Bueller

Grei quer dizer Nação e quer dizer rebanho, e é disto que trata esta crónica: uma Nação feita rebanho, sem pastores à altura. Mas guardemos a nova temporada para depois do Verão, que o sol é de borla e a imperial ainda se consegue pagar

As audições perderam audiência. Estou a falar da série que passa na ARTV, sob o título CIP à TAP, e a que já ninguém liga nenhuma. O novo hype é Rabo de Peixe: os vilões não usam gravata, o que vai bem com o Verão; lesam menos o país, o que vai melhor com a carteira; e dizem as asneiras todas que ficaram por dizer no Parlamento, o que alivia a alma.

Coisas sérias: a CPI à TAP seria um escândalo num país que se distinguisse vagamente de um rebanho semi-adormecido. Nacionalização altamente lesiva como contrapartida de um assalto ao poder depois de derrota nas urnas, nepotismo, abuso de poder, partidarização de empresa pública, bónus e indemnizações milionárias para o topo, despedimentos e cortes salariais para a base, amadorismo e incompetência na gestão política do dossier, suspeita de uso abusivo dos serviços de informações da República, mentiras, ausência de respostas no Parlamento por parte do primeiro-ministro, ameaças e, por fim, reprivatização em marcha e em baixa.

Disse coisas sérias? Estava a falar numa zona livre da influência de Carlos César, claro. Sobre isto, chamou-lhe o presidente do PS "uma lengalenga", e acrescentou que os portugueses lhe "têm uma profunda indiferença, estão fartos disso". Não há conversa séria possível com esta gente. No Reino Unido, por exemplo e por contraste, um primeiro-ministro caiu por causa de umas festas no jardim. Por cá, então, os mesmos guardiões da ética republicana que acham que isto da CPI é uma "lengalenga" que não nos deve distrair, rasgaram vestes e rangeram dentes, sem disfarçar um certo júbilo. O ex-primeiro-ministro britânico, claro, padecia de falha grave: não era socialista.

Noutro episódio desta saga, o chefe Costa declarou que os "bons resultados na economia também chegam à educação e ao SNS". Sublinho: SNS e Educação.

Confesso que não sei bem por onde começar. O Governo reclama para si os méritos do crescimento económico, totalmente alavancado no Turismo? Eu cá gostaria de ter em riqueza um décimo daquilo que o primeiro-ministro tem em falta de vergonha. O mesmo Governo que tanto faz para prejudicar o Turismo, desde logo no ataque irracional ao alojamento local – disfarçando o facto de nunca se ter investido tão pouco em construção de habitação depois de 2014 – larga o pano para aproveitar o vento. Para o PS, se cresce é mérito seu, se definha a culpa é dos outros.

Mas invocar o SNS? A sério? Da última vez que ouvi o cavalheiro no Parlamento, a uma pergunta do Rui Rocha sobre as filas de espera, formadas de madrugada por velhos e doentes, uma vez por mês, num qualquer centro de saúde da linha de Sintra, para marcarem uma consulta, porque não têm médico de família, Costa gabou-se de ter sido o PS a criar o SNS. Eis o que Costa tem a dizer ante o sofrimento das ovelhas do rebanho. Gente séria do PS corou de vergonha; e António Arnaut deu voltas no túmulo de indignação.

E por falar em Educação: na mesma semana, João Costa, o ministro da pasta, disse: "desejamos é que o ano lectivo termine com uma tranquilidade que é devida a todos os alunos, até porque nós já estamos a chegar a um momento em que os que estão a ser mais prejudicados são aqueles que dependem mesmo da escola pública, são os que não têm dinheiro para pagar explicações, são os que não têm outros estímulos." João Costa tem razão. Corrigiria, apenas, a parte em que diz que "já estamos a chegar a um momento". Esse momento já chegou. Já chegou na educação, já chegou na saúde, já chegou na justiça. Já chegou há muito tempo, mas não chegou sem responsáveis.

Por esta altura, o estimado leitor questiona-se: mas que grande salada de frutas que para aqui vai. Tem razão, e ainda não acabou. Nem de propósito, Lucília Gago, finalmente, a propósito da operação tutti frutti, veio dizer que o processo não avança por falta de meios. Uma operação que foi alvo, ao longo de 6 anos, de comprometedoras fugas de informação, com graves revelações, não avançou por falta de meios do ministério público. Não estivesse a Justiça gaga, seria caso para dizer que quem fala assim não é gago. Mas é.

O pior? O pior é que Carlos César tem razão. Os portugueses estão para o estado da Nação como Ferro Rodrigues estava para o segredo de Justiça: escatologicamente nas tintas.

Não surpreende, portanto, que a oposição, irmanada no espírito da Nação, considere que perder por 2 ou 3 pontos as próximas eleições não seja um mau resultado. As sondagens mostram, aliás, que o PSD não se move; apresentando uma intenção de voto inferior aos resultados das últimas duas legislativas com Rio no comando. Não pensem que critico. Se o Governo mostra afeição pela comédia cínica, a oposição exibe uma comovente afeição pela dramaturgia poética, na mais fina homenagem a Beckett. Em À espera de Godot, Vladimir diz "Bem, vamos?", e Estragon responde "Sim, vamos…". E, no entanto, nenhum deles se move. Ou, como diria Ferris Bueller, no Rei dos Gazeteiros – onde o folião Ferris, a bela Sloane e o trágico Cameron se baldam às aulas para viver um dia de sonho, numa espécie de metáfora sobre a portugalidade – “A vida move-se demasiadamente rápido. Se não páras e não olhas à volta de vez em quando, ainda a perdes.”

Grei quer dizer Nação e quer dizer rebanho, e é disto que trata esta crónica: uma Nação feita rebanho, sem pastores à altura. Se a Anatomia de Grey conta já com 20 temporadas, por que é que a Anomalia da Grei, num país com quase 900 anos, não há-de ter mais uma? Mas calma, calma: hoje é dia 5 de Junho, o célebre dia da gazeta de Ferris Bueller, e o bom tempo chegou. Guardemos a nova temporada para depois do Verão, que o sol é de borla e a imperial ainda se consegue pagar.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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