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Visão | Beirute à beira de um ataque de nervos

Visão | Beirute à beira de um ataque de nervos

Num momento em que o Líbano enfrenta a maior crise económica de sempre, perante um sistema financeiro destruído e dependente da ajuda externa, esta sobrepopulação tornou-se num fardo demasiado pesado que nem a população nem o Estado querem continuar a assumir. O clima de animosidade estende-se à Organização das Nações Unidas e às suas agências que ali atuam

Embrenhados que estamos na questão ucraniana, esquecemos outras realidades que parecem ter acabado apenas e só porque os media não emitem novas “temporadas”.

A questão síria é um desses dramas que continua vivo, sangrento e que vai fazendo vítimas. É certo que, em bom rigor, o país já não vive um conflito armado. Mas tão pouco está em paz no sentido em que a entendemos, como um tempo de segurança e de condições de vida dignas.

O êxodo, que teve início em 2011 e que continua, caiu no esquecimento da comunidade internacional ocidental. Os números apontam para cinco milhões de refugiados sírios nos países limítrofes, nomeadamente Turquia, Jordânia e Líbano. Este número assustador ameaça fortemente a estabilidade na região.

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O Líbano, outrora chamado a Suíça do Médio Oriente, está hoje à beira dum verdadeiro “ataque de nervos” que redunda quase sempre em conflitos armados quando sentido por países e comunidades.

Com uma população “nativa” de cerca de 4 milhões, alberga 1,5 milhões de refugiados sírios, aos quais acresce mais meio milhão de palestinianos. Estas cifras carecem de acuidade porquanto, ironicamente, não existe no país uma política migratória, tendo todo o processo sido deixado nas mãos do ACNUR. O que se sabe de fonte mais ou menos segura é que, na última década, o número de crianças refugiadas nascidas no país igualou o número de libanesas.

, apontando-as como responsáveis por fomentarem a permanência destes refugiados no país. A insegurança e os fundamentados receios dos funcionários daquelas instituições não são, porém, suficientes para os fazer abandonar a sua missão. Um trabalho e uma missão que é tão mais difícil porquanto não existem campos de refugiados no Líbano. A população em fuga está um pouco por todo o território, criando campos informais idênticos aos nossos bidon ville dos anos 60 em França. Num país onde o fornecimento de eletricidade e água está restringida a duas horas por dia, as condições nestes verdadeiros acampamentos não vigiados, nem formalmente protegidos, são ainda mais precárias e desumanas.

Perante toda a situação e tenção social que se vive, o governo encara claramente a hipótese de deportar coercivamente este milhão e meio de pessoas de volta à Síria, alegando que a guerra acabou e como tal o estatuto de “refugiado” já não se aplica. Este argumento altamente populista e já usado noutros países na mesma situação, como recentemente na Turquia, colhe e faz eco junto da população, que aceita sem questionar, narrativas erróneas sobre os apoios dados aos refugiados pela comunidade internacional.

A palavra de ordem é, pois, categorizar a população síria que permanece no Líbano e fazer retornar ao seu país os que forem considerados imigrantes económicos e os trabalhadores sazonais, que segundo os media e sem qualquer base fundamentada, ascenderão entre 30% a 40% e os que apoiaram as políticas de Bashar al Assad. Ora este é, em boa verdade, um exercício impossível de levar a cabo. Desde logo porque muito embora a Síria efetivamente não se encontre já em conflito armado todas as suas infraestruturas se encontram destruídas. Daquele país nada mais resta que um monte de escombros que irá fazer as delícias e as fortunas de muitas empresas de reconstrução quando Assad deixar o poder. Logo, se de facto não são refugiados de guerra são, como dizia alguém, refugiados da fome.

Depois porque identificar os que apoiaram as políticas do Presidente Sírio é algo impossível de levar a cabo.

Alguns políticos mais moderados apontam, como solução para o problema, a criação de campos de refugiados onde sejam garantidos os direitos e deveres das populações em fuga. Evitar-se-ia a disseminação incontrolada por todo o território com a consequente tensão e alarme social, que tem vindo a redundar cada vez mais em violência. Mas esta é também uma solução altamente contestada porquanto não promove a integração.

“- Não queremos que se integrem”, dizia-nos um político no ativo, fazendo eco da vontade da população. “Queremos que partam e que nos deixem reconstruir o país.”

Apontando o dedo à comunidade e às organizações internacionais em geral e à Europa em particular, queixam-se do favorecimento dado à população em fuga em detrimento da população local.

“– Em 2020 fomos vítimas da terceira maior explosão de sempre depois das bombas nucleares de Hiroxima e Nagasaki. Os apoios externos foram escassos e fomos abandonados à nossa sorte.”

Sorte essa que está nas mãos dum “governo” que a própria população reconhece ser inoperante e bastante permeável à corrupção.

As organizações internacionais negam a existência duma dualidade nos apoios. Afirmam, outro sim, que o governo libanês recusa ajuda internacional receando que essa seja moeda de troca para a permanência das populações refugiadas.

“A questão do fornecimento de energia à população, que se agravou de forma exponencial após a explosão no porto de Beirute, poderia ter sido minimizada através dum programa de apoio proposto ao governo. Mas foi recusado com o argumento de que essa seria a contrapartida para a aceitação de palestinianos e sobretudo sírios de forma permanente no país”, informou uma fonte internacional.

País que se debate com uma taxa de desemprego e de inflação que cresce a cada momento, atirando para níveis abaixo da linha de pobreza mais de metade da população. País onde as assimetrias são gritantes no número de carros e empreendimentos de luxo que se veem no centro de Beirute.

Os discursos pró expulsão de refugiados vão, pois, ganhando força e vigor.

No entanto deportar uma população de refugiados com esta dimensão para um país destruído é condená-la. Mas permanecer num país sem condições e sem estrutura tão-pouco é protegê-la.

Está na hora duma intervenção diplomática por parte da Europa e da comunidade internacional, sob pena de termos mais um foco de conflito no Médio Oriente. O rastilho está já colocado!

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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