observador.ptobservador.pt - 26 mai. 20:38

Centenário de Kissinger — o europeu ambíguo

Centenário de Kissinger — o europeu ambíguo

A maioria dos grandes estadistas define-se pelo que fizeram, pelos seus sucessos e fracassos. Kissinger, não. Kissinger define-se pela sua personalidade. Ensaio de André Abrantes Amaral.

“We believe peace is at hand.” A frase que Henry Kissinger proferiu em finais de Outubro de 1972 tornou-se famosa. O então Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos referia-se ao Vietname e aos acordos de paz de Paris que estavam praticamente fechados. A frase ganhou fama porque era tão promissora quanto enganadora. Na verdade, não foi mais que uma tentativa de forçar o sucesso das negociações que acabaram por falhar porque Kissinger não pôs Saigão a par de certos pormenores. Semanas mais tarde, William Safire (o homem que escrevia os discursos de Nixon) congratulou Kissinger por a sua intenção ser a de garantir a Hanói que Washington continuava interessada na paz e não a de enganar o eleitorado norte-americano, que ia a votos no mês seguinte. Kissinger não gostava que o julgassem ingénuo e, quando Safire afirmou que antes ingénuo que insidioso, a sua pronta resposta foi: ‘Not in this job.’

O episódio descrito por Walter Isaacson na biografia de Henry Kissinger retrata a ambiguidade do gigante da diplomacia internacional. Para Kissinger, a acção humana, qualquer que esta seja, tem inúmeras consequências, sem contar com as diversas interpretações do que se diz ou faz. Kissinger possui uma visão ampla do mundo e para ele existe sempre mais do que uma forma de ultrapassar um problema. A moralidade não tem apenas uma leitura. Para Kissinger, nada pode ser dado como adquirido, há nuances, a política não se sujeita às mesmas regras que regem as relações de amizade, de família e até dos negócios. Para Kissinger, a fronteira entre o certo e o errado muda conforme as situações, conforme o momento, conforme a urgência, conforme o que se ganha e o que se perde, e tendo em conta o valor do que se adquire e daquilo que se prescinde. Nesse Outubro de 1972, Kissinger fez os possíveis e os impossíveis para que os acordos de paz no Vietname fossem assinados antes da reeleição de Richard Nixon. Tanto fez que irritou o próprio Presidente. Ao contrário do seu Conselheiro de Segurança Nacional, Nixon queria os acordos fechados depois das eleições porque entendia que, nessa altura, seria mais fácil aos EUA imporem as suas condições para a paz. Ademais, Nixon desconfiava de Kissinger. Via nos esforços deste um pretexto para que a sua reeleição dependesse dos feitos de um homem que nem sequer nascera nos EUA. Nixon era daqueles que desconfiava de quase toda a gente porque não confiava em sim mesmo, mas relativamente a Kissinger tinha uma certa razão. O Presidente sabia que o seu conselheiro era demasiado ágil, demasiado rápido, demasiado repentino e demasiado calculista. Com ele todo o cuidado era pouco.

Nixon teve sorte. Kissinger tanto quis apressar a paz que não contou toda a história às partes envolvidas. O falhanço das negociações teve como resultado os bombardeamentos de Natal sobre o Vietname do Norte que visavam, não forçar Hanói a aceitar o acordo, mas garantir a Saigão que os EUA não cediam aos comunistas. A ambiguidade, uma vez mais. E se falhou em Outubro, desta vez acertou. A paz foi alcançada em Janeiro de 1973, nos termos que Kissinger desejava e no tempo que Nixon preferia.

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