sol.sapo.ptJosé António Saraiva - 25 mai. 00:00

Tempos modernos

Tempos modernos

Na oficina fui atendido por uma rececionista a quem expus o problema, entreguei a chave do carro e fiquei à espera. Uns minutos depois regressou com uma má notícia. O problema não eram os pneus mas a correia de transmissão.


Tudo começou com um ícone no painel de navegação do meu carro - antigamente chamado tablier - dando conta da falta de pressão num pneu. Parei na estação de serviço mais próxima, verifiquei o ar dos pneus, mas o ícone não desapareceu. É sempre assim, aliás: para apagar estes ícones é preciso ir a uma oficina da marca. E, claro, tinha de verificar se havia algum problema com o dito pneu.
Desloquei-me à oficina, onde fui atendido por uma rececionista a quem expus o problema, entreguei a chave do carro e fiquei à espera. Uns minutos depois, a senhora regressou com uma má notícia: a correia de transmissão estava danificada. E explicou: 
- Quando liguei o carro, ouvi um barulho estranho. Fui falar com um mecânico, que confirmou as minhas suspeitas: a correia de transmissão está gasta. Pode partir-se a qualquer momento. Portanto, é melhor não andar mais com o carro. Se a correia se partir, causa danos graves no motor. Quer mandar substituir?
Que remédio tinha eu! 
A funcionária fez ali mesmo o orçamento, era um balúrdio, mas não havia alternativa. Conformado, mandei efetuar a reparação.
- Quanto tempo leva? - perguntei, convencido de que poderia ir buscar o carro no dia seguinte, pois tinha uma viajem marcada.
- Uns seis ou sete dias - respondeu a senhora, perante a minha estupefação. - Sabe, é preciso tirar o motor para substituir a correia. E foi uma sorte ser eu a pegar no carro. Se fosse um arrumador, podia não ter dado por nada… 
Portanto, ia pagar uns milhares de euros e estava cheio de sorte!


Colocava-se agora a necessidade de alugar um carro para fazer a dita viagem. E aí voltei a ter sorte: embora fosse um carro bem mais pequeno do que o meu, era o último disponível.
Lá fiz a viagem, fui e voltei, passou mais de uma semana - e notícias do meu carro, nada. Tentei saber alguma coisa pelo telefone, mas as chamadas para as grandes organizações são sempre dificílimas. Decidi meter pés (aliás, pneus) ao caminho e ir lá pessoalmente.
A rececionista que me tinha atendido pediu-me desculpa, disse-me que faltava um carreto que vinha da Alemanha, e que seriam necessários mais uns três ou quatro dias.
Dois dias depois, porém, recebo um sms a convocar-me para uma reunião na oficina. «Mau!», pensei. «Se calhar o carro não tem arranjo ou o arranjo é muito mais caro do que o previsto e querem falar-me diretamente». A convocatória era insólita: indicava as 11h38 e o nome de um rececionista que eu não conhecia.
Cheguei às 11h38 em ponto! Dirigi-me ao dito rececionista e disse-lhe ao que ia. O homem pediu-me para esperar. Dez minutos depois, continuando eu à espera, veio ter comigo a funcionária minha conhecida e ofereceu-se para me atender, explicando que o colega estava «demorado».
Sentei-me à frente da secretária da senhora e, após uns segundos de conversa, ela exclamou:
- Já sei! Era o que eu suspeitava! -. E com muitas desculpas explicou que a convocatória para lá ir fora um engano do computador.


Voltei para casa. No dia seguinte, liga-me a rececionista com nova má notícia: o motor tinha sido desmontado e haviam descoberto um desgaste na bomba da embraiagem. E adiantou que seria de aproveitar para a substituir, pois, com o motor desmontado, pouparia a mão-de-obra desse trabalho. Perguntei quanto era o novo arranjo: era mais um balúrdio. Novamente conformado, mandei substituir. 
Escusado será dizer que continuava a andar com o automóvel alugado, que todos os dias custava umas dezenas de euros.
Dezoito dias depois de ter posto o meu carro na oficina, recebo finalmente uma mensagem a dizer que estava pronto! Fui logo buscá-lo e entregar o carro alugado. E verifiquei que me tinham faturado pelo aluguer apenas seis dias. No meio da desgraça, comportavam-se seriamente!


A história ainda não acabou. Já tinha eu esquecido o episódio, ligam-me da oficina a perguntar se estava satisfeito com o trabalho. Fiquei sem saber o que dizer. Expliquei o que se passara, o tempo enorme que durara o conserto, mas adiantei que os funcionários tinham sido muito corretos. Disse-me então que eu iria receber um questionário, e pediam-me que desse nota dez ao trabalho efetuado. 
E que remédio tenho eu? Acho lamentável esta prática de perguntarem às pessoas se estão satisfeitas com um serviço qualquer, e ao mesmo tempo dizerem-lhes que só o 9 e o 10 são notas positivas, pelo que agradecem que o classifiquemos assim. E mesmo que o cliente esteja furioso com o serviço, não quer prejudicar os funcionários que o atenderam e dá nota 10. 
Estas modernices são um logro. Não melhoram nada. E que dizer do preciosismo de convocarem uma reunião para as 11h38? Ridículo. E enganador: tudo se passou ao contrário do indicado na convocatória. 
Chaplin tem um filme chamado Les Temps Modernes onde parodia as contradições desta sociedade. Hoje teria muitíssimo mais matéria para parodiar.
 

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