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TAP e Estado de Direito: a debilidade das instituições democráticas

TAP e Estado de Direito: a debilidade das instituições democráticas

A história começou como uma notícia sensacionalista dando conta de uma compensação milionária paga, por uma empresa pública, a uma Secretária de Estado. Mas culminou com um relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) que é o retrato nu e cru da debilidade das nossas instituições democráticas. Que tenha sido um órgão de comunicação social o impulsionador da presente ″reposição da legalidade″, lança suspeitas sobre a eficácia dos mecanismos próprios de controlo interno e externo da Administração Pública portuguesa, designadamente quanto a decisões de despesa pública.

A história começou como uma notícia sensacionalista dando conta de uma compensação milionária paga, por uma empresa pública, a uma Secretária de Estado. Mas culminou com um relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) que é o retrato nu e cru da debilidade das nossas instituições democráticas. Que tenha sido um órgão de comunicação social o impulsionador da presente "reposição da legalidade", lança suspeitas sobre a eficácia dos mecanismos próprios de controlo interno e externo da Administração Pública portuguesa, designadamente quanto a decisões de despesa pública.

A cessação de funções de Alexandra Reis é um exemplo triste da falta de qualidade da decisão pública no nosso país e, preocupantemente, da aparente facilidade (e opacidade) com que decisores políticos e gestores públicos violam as suas vinculações jurídicas.

As conclusões a que chega a IGF - num relatório bem escrito e bem fundamentado, ainda que não isento de críticas - explicam-se por referência a dois diplomas legais: o Estatuto do Gestor Público (EGP) e o Regime Jurídico do Setor Público Empresarial (RJSPE). A aplicação de ambos decorre do facto de a TAP ser uma empresa pública (um aspeto incontroverso, que não é sequer contestado pelos visados).

O EGP contém disposições que visam regular a cessação de funções de um administrador de uma empresa pública. Com pertinência, (i) ou o administrador renuncia voluntariamente ao cargo (não tendo direito a qualquer compensação), (ii) ou o administrador é demitido por mera conveniência quando o acionista Estado pretender dispensar os seus serviços (caso em que pode ter direito a uma compensação). Nesta última situação, estabelece-se que a compensação terá um teto equivalente a 12 meses de serviço e que só pode ser atribuída aos administradores que exerçam o mandato há mais de 12 meses.

Os vários intervenientes no processo - de Alexandra Reis à TAP, passando pelas respetivas equipas de aconselhamento jurídico, até ao próprio Ministério das Infraestruturas e Habitação (nas pessoas do ex-secretário de Estado e ex-ministro) - ignoraram por completo estas normas.

Desde logo, procurou seguir-se uma modalidade de cessação de funções (por acordo com compensação) que não está prevista no EGP. Depois, acertou-se um montante compensatório que excedia em muito o limite máximo ali previsto. Por último, mascarou-se tudo publicamente, apresentando o desfecho como um de renúncia.

A este propósito, não pode espantar que o EGP repudie este tipo de soluções, antes optando por regras mais estritas e limitativas quanto a eventuais compensações financeiras. Tendo em conta a vastidão e multiplicidade de entidades administrativas, o interesse público em garantir uma gestão prudente e não fraudulenta dos recursos financeiros públicos, bem como a necessidade de acautelar o princípio da igualdade neste tipo de decisões, seria intolerável que dirigentes administrativos pudessem livre e arbitrariamente fixar compensações nos montantes que reputassem por acertados.

Nesta medida, a aparente lógica seguida por ambas as partes - a de que, na ausência de proibição expressa no EGP, se poderia fazer um acordo de cessação como em qualquer entidade puramente privada submetida ao Código das Sociedades Comerciais - afronta os mais elementares princípios republicanos e de legalidade da Administração Pública (que apenas pode agir com fundamento na lei).

O que já causa espanto - senão mesmo choque - é que o Ministério das Infraestruturas e Habitação não tenha conseguido impedir tal ilegalidade. A aparente leviandade e informalidade (inclusivamente com decisões transmitidas através de mensagens WhatsApp) com que se tratou internamente do assunto e se deu "anuência política" ao acordo encontrado entre Alexandra Reis e TAP, aponta para uma gritante incapacidade do Ministério em servir como garante do interesse público. E, por isso, sugere a existência de debilidades graves nos procedimentos de controlo e de decisão governamentais. O que está em crise é o princípio do Estado de Direito.

Lamentavelmente, o relatório da IGF procura isentar de responsabilidades os anteriores Ministro e Secretário de Estado das Infraestruturas. Fá-lo de forma não persuasiva e juridicamente pouco sólida, remetendo para o facto de terem atuado com base num "pressuposto de legalidade" tal como afiançado pela CEO da TAP. O argumento não colhe: é que nem a TAP nem as sociedades de advogados envolvidas são serviços do Ministério. O mínimo que se impunha, e que seria expectável, era que o Ministério procedesse a uma análise própria, isenta e documental da legalidade da cessação de funções de Alexandra Reis: a concordância com um pagamento de meio milhão de euros não pode ser dada com base num diz que disse que era legal. Tanto mais que o Governo até dispõe de um Centro de Competências Jurídicas perfeitamente capaz de responder a este tipo de questões, caso não houvesse aptidão para tanto no próprio Ministério.

Ainda que num plano essencialmente político, a debilidade das instituições democráticas comprova-se também pela não inclusão do Ministério das Finanças neste processo. O RJSPE é claro ao determinar que, nas relações com as empresas públicas, a função acionista do Estado cabe ao Ministério das Finanças. Isto significa, em particular, que apenas este último tem competência legal para proceder à modificação da composição de um órgão social como o Conselho de Administração da TAP (seja demitindo administradores ou designando novos). Que nem a TAP nem o Ministério das Infraestruturas tenham promovido a intervenção daquele é sintomático de falhas graves na governança pública. Com efeito, o Ministério das Infraestruturas mais não fez do que usurpar competências, uma vez que a saída forçada de Alexandra Reis sempre teria de legalmente passar pelas Finanças. O Governo falhou então como um todo, atenta a sua colegialidade, revelando desarticulação e deslealdade no seio do gabinete.

Em suma, a compensação sensacional que havia sido obtida por Alexandra Reis era, afinal, tão-somente a ponta do icebergue de uma maleita sistémica bem mais profunda: a da corrosão dos alicerces democráticos da República, quando as instituições, os procedimentos e os decisores se revelam incapazes de proteger e promover o interesse público.

Luís Heleno Terrinha, professor auxiliar da NOVA School of Law

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