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A direção do São Luiz devia demitir-se

A direção do São Luiz devia demitir-se

Quando se esperaria que a direção do São Luiz (e Rivoli) viesse condenar a ação de activistas trans e mostrar-se solidária com os trabalhadores da peça Tudo Sobre a Minha Mãe, aconteceu o contrário.

No filme de Pedro Almodóvar Tudo Sobre a Minha Mãe, a personagem Lola é uma transsexual interpretado pelo ator cis Toni Cantó, atualmente criador artístico do canal de televisão 7NN depois de ter passado vários anos pela vida política. Não me recordo de alguém ter acusado Almodóvar de transfobia por ter escolhido um casting transfake.

Essa acusação foi agora feita por ativistas trans em relação à peça teatral adaptada do filme, em exibição no Teatro de São Luiz, em Lisboa, acusação essa que foi iniciada pela intervenção deplorável de uma ativista que, identificando-se como artista e prostituta, subiu ao palco seminua para desrespeitar e agredir verbalmente os atores, e em particular o ator André Patrício que interpretava a personagem Lola. Quando se esperaria que a direção do São Luiz (e também do Rivoli) viesse a público condenar esta ação e mostrar-se solidária com os trabalhadores culturais envolvidos, aconteceu o contrário, e junto com o Teatro do Vão trataram de substituir André Patrício por uma atriz trans para a interpretação de Lola.

Esta contestação a que um ator cis possa representar um personagem trans é castradora da liberdade de expressão artística e ilustra os traços fundamentalistas e censórios de franjas da ideologia woke. O Otelo de Shakespeare tem de ser interpretado por um racializado, ou corre o risco de ser acusado de blackface? Cio-Cio-San, a Madame Butterfly de Puccini, tem de ser interpretada por uma soprano asiática? O papel de Quasimodo, o Corcunda de Notre-Dame de Vitor Hugo, tem de ser interpretado por um deficiente portador de hipercifose? No que respeita à identidade de género, o fake na representação teatral sempre existiu. Primeiro, por via do cross-gender acting, em que atores e atrizes representam papéis do sexo oposto, e mais recentemente o transgender acting que remete para a questão da representação trans.

Desde a Antiga Grécia, passando pelo teatro shakespeariano da Inglaterra renascentista, o teatro kabuki, e a ópera chinesa, vigorou o all-male casting devido às restrições moralistas impostas às mulheres na representação teatral. No entanto, no que respeita ao teatro kabuki essa tradição foi mantida e a representação de personagens femininas está a cargo de atores. Por outro lado, também existem companhias teatrais de representação all-female, exemplos, o Takarazuka Revue fundado no Japão em 1913, e a Los Angeles Women's Shakespeare Company, produtora de peças de Shakespeare com casting exclusivamente feminino.

Já num registo de natureza anti-racista o American Shakespeare Center levou à cena a peça Othello em que este é interpretado pela atriz afro-americana Jessika D. Williams. E também é bem conhecido o caso de Sarah Bernhardt que em finais do século XIX interpretou Hamlet.

No Reino Unido, a polémica relacionada com o transgender acting surgiu no Outono de 2020 quando um ator cis interpretou o papel de uma mulher trans no musical Breakfast on Pluto em exibição no West End de Londres. A contestação trans levou alguns teatros como o The Royal Court, Oxford Playhouse, Contact Theatre e o Royal Exchange em Manchester, entre outros, a subscreveram em 2021 o trans casting statement , em que se comprometem a não endossarem papéis de personagens trans e não binárias a atores cis. Acusações de sexismo e desigualdade de género na produção teatral britânica também já vinham sendo dirigidas ao Arts Council England desde 2012. O estudo Igualdade de Género e Diversidade nos Teatros Europeus publicado em 2021 pela European Theatre Convention vai no mesmo sentido. Nos Estados Unidos da América, a polémica da identidade de género atingiu o musical Tootsie (estreado na Broadway em 2019) com acusações de transfobia. A peça, recorde-se, é baseada no filme com o mesmo nome em que Dustin Hoffman interpreta um papel feminino.

Retomando os acontecimentos no São Luiz, as reivindicações trans falham no conteúdo e na forma de as expressar publicamente. Colocando-as no plano da luta de classes, como aqui referiu Dusty Whistles, mas à margem do universo de todos os trabalhadores culturais cuja precariedade resultante do subfinanciamento do sector é conhecida, deixando entender que os critérios de acesso mais valorizados para o casting trans são as características identitárias e não o mérito artístico, é contribuir para a guetização e não para a inclusão. Sugerir que o desempenho de papéis trans por atores cis é uma apropriação de postos de trabalho, é colocar trabalhadores contra trabalhadores. Foi isso que aconteceu no São Luiz e que poderia ter sido evitado se os ativistas trans não tivessem apoiado uma forma de ação incívica que em nada beneficia a causa que pretendem defender.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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