sol.sapo.ptJosé António Saraiva - 27 jan. 00:00

O contribuinte

O contribuinte

Ora, depois disto, como pode o Governo exigir ao desgraçado que faz uns biscates ao fim de semana para equilibrar o orçamento familiar que passe faturas e pague sobre isso impostos? Que moral tem o Governo para o fazer?

Nos anos 60, conheci em Paris um jovem casal de estudantes, ele português e ela sueca.

Vinham a Portugal nas férias e aproveitavam para comprar produtos que cá eram muito mais baratos do que em França.

Nesse tempo ainda havia fronteiras na Europa e alfândegas onde se pagavam direitos aduaneiros.

Pois bem, quando o jovem casal regressava a Paris, a cena repetia-se no aeroporto: ao aproximarem-se do local onde tinham de escolher entre a porta verde (relativa a quem não tinha nada a declarar) e a porta vermelha, a rapariga entregava ao marido o saco que trazia na mão – e era ele quem passava alegremente pela porta verde.

O português não tinha qualquer problema em passar pela porta verde levando produtos que deviam pagar direitos; a sueca não conseguia fazê-lo. Não era capaz. Era assim que tinha sido educada.

Como latinos, sempre procurámos trocar as voltas à Polícia, ignorar as proibições, não respeitar os limites de velocidade, fugir o mais possível aos impostos.

Fugir ao fisco era uma prática normal. Até havia quem fizesse gala disso. Era um sinal de esperteza. Só os parvos pagavam todos os impostos.

A máquina fiscal também funcionava pessimamente, permitindo os maiores abusos.

Até que chegou à Direção-Geral dos Impostos um senhor chamado Paulo Macedo que se propôs pôr ordem na casa.

Ninguém acreditou. A desorganização era um mal nacional e a fuga ao fisco estava-nos na massa do sangue.

Além disso, o homem chegava ao cargo envolto em polémica.

Porque, requisitado pelo Estado ao BCP, exigiu receber o mesmo que recebia no banco – e que era muito mais do que um diretor-geral ganhava.

Mas a exigência era perfeitamente normal: ninguém gosta de ir de cavalo para burro. E não fazia sentido que o Estado fosse requisitar uma pessoa ao setor privado e lhe oferecesse um ordenado inferior ao que lá ganhava.

Por outro lado, se a perspetiva do Estado era melhorar muito a cobrança de impostos, o que pagaria a Paulo Macedo seria exponencialmente compensado pelo aumento das receitas fiscais.

Manuela Ferreira Leite, a ministra das Finanças que o convidou, seguiu este ponto de vista e aceitou pagar-lhe o que ele pedia.

Mas, perante o clamor público que se levantou, empossou-o às escondidas no seu gabinete.

A aposta da ministra resultou, porém, em cheio.

Paulo Macedo reformou métodos de trabalho e bateu recordes sucessivos de cobrança de impostos, conseguindo um verdadeiro milagre.

Quando saiu do cargo, três anos depois, a máquina fiscal era outra.

E pode também dizer-se que era outra a atitude da população face ao fisco.

Como se sentia maior rigor na cobrança, e muito mais gente pagava impostos, a fuga ao fisco começou a ser mal vista.

Se alguém fugia, os cumpridores tinham de pagar mais.

Pagar os impostos tornou-se um sinal de civismo e até de seriedade.

Estava o assunto neste pé até há meia dúzia de semanas.

Até que surgiu o caso da administradora da TAP a quem foi paga uma indemnização de 500 mil euros.

E logo a seguir o caso de uma deputada socialista que acumulou o salário no Parlamento com o da REN.

E o das obras no Hospital de Belém onde se pagou o quádruplo do que estava no respetivo orçamento.

E vieram de novo à baila os 4 mil milhões de euros que o Estado já investiu na TAP e que não vai recuperar.

E perante estes exemplos o cidadão interrogou-se: foi para isto que serviram os meus impostos?

Está à vista de toda a gente que o Governo desbaratou muito dinheiro que cobrou aos contribuintes.

Que pagou injustificadamente indemnizações milionárias, que permitiu a acumulação de salários, que não controlou o custo de obras públicas, que enterrou milhares de milhões por mero capricho ideológico.

O caso de Alexandra Reis – e de todo o desaforo que por aí vai neste campo – não foi apenas politicamente importante ou moralmente reprovável: foi profundamente antipedagógico.

Perante o sacrifício que muitos portugueses fazem para ter os impostos em ordem, o Estado devia ser exemplar na forma como gasta esse dinheiro.

Devia ser escrupuloso, mostrando ter respeito pelos que pagam.

Mas não tem: tem desprezo.

Quanto mais dinheiro cobra aos contribuintes, mais dinheiro gasta inutilmente.

Os anos que foram necessários para mudar a atitude dos portugueses em relação ao fisco acabaram por ser desbaratados em meia dúzia de semanas pelo conhecimento do modo indecoroso como o Estado dissipa o dinheiro que recebe.

Mais do que qualquer outra coisa, o caso de Alexandra Reis deixou esta mensagem aos portugueses: «Não pagues impostos, pois o teu dinheiro vai ser mal gasto».

P.S. – Estes dinheiros não devem ser confundidos com os milhões que estão a gastar-se nas Jornadas Mundiais da Juventude. Aquele foi dinheiro perdido; este diz respeito a um investimento, como o que se fez na Expo 98, que poderá ter retorno ou não, mas isso só se saberá no fim.

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