visao.sapo.ptsvicente - 27 jan. 17:45

Visão | Cartas e postais em vias de extinção

Visão | Cartas e postais em vias de extinção

A escritora Alice Vieira escreve, com Nelson Mateus, um diário sobre as suas recordações e sobre as memórias entre as diferentes gerações. O Diário de uma Avó e de um Neto, um projeto do site Retratos Contados
Querida avó,

Todos ficam encantados quando olham para o nosso “Diário da avó e do neto” e comentam: “Que raridade, escreverem cartas e postais”.

Efetivamente, nos últimos anos, apenas recebo postais no Dia dos Namorados, no meu Aniversário, no Natal e nada mais a declarar.

No entanto, tenho todos guardados e, pontualmente, gosto de os recordar.

Recentemente fui aos Correios. Uma jovem (da tua idade) falava, com muita graça, das saudades que sentia em receber cartas de namorados. Todas as que recebe, atualmente, são de contas para pagar, pois já “ninguém” escreve cartas.

Não sou capaz de deitar fora postais e cartas antigas. Fazem parte da minha história. Os jovens devem achar que somos do tempo dos dinossauros, mas efetivamente tenho bastante presente o tempo em que as cartas e os postais, para além do telefone, eram a única forma de comunicar à distância.

Alguém pede namoro por carta? Já não se enviam cartas, a dar os sentimentos a quem perde um ente querido… São cada vez menos o que sabem o que era um telegrama ou um fax.

É verdade que o correio eletrónico veio facilitar-nos, muito, a vida. Mas quem guarda e-mails durante anos como fazíamos com as cartas?

Sei que tu costumas receber, e enviar, centenas de postais semanalmente. Sei que até tens um grupo de amigos, privilegiados, que recebem postais teus nos aniversários e natal.

Eu, a quem chamas “neto adotado”, ainda não faço parte desse grupo restrito que recebe postais teus escritos à mão.

No entanto, mantenho a esperança que um dia isso venha a acontecer.

No teu lugar, ia já comprar um lindo postal, da Ericeira, para enviares a este neto que tanto te ama.

Nem que seja para fazeres como o teu filho, que aos 8 anos, de Coimbra, te enviou o famoso o postal onde constava: “Mãe, não tenho nada para dizer. Beijos”.

Mas, felizmente, tu tens sempre tanto para dizer!

Aguardo. Bjs

Querido neto,

Que bela tema decidiste abordar. Cartas e postais, algo que me é tão caro e me preenche grande parte do dia.

Nestes últimos dias tenho-me sentido muito velha. Muito velha mesmo.

Não, não tenho novas maleitas, não me doem as costas mais do que já doíam, não sinto mais dificuldade em acartar com a sacaria do supermercado, não oiço nem vejo pior do que até aqui, e lembro-me do nome de todos os meus amigos (e dos outros também…).

Nada de físico, portanto.

Tudo começou há dias quando, ao folhear um jornal, fui alertada, logo no artigo de abertura, para o facto de a capa daquele número ser diferente, inovadora, produto da riqueza e dinâmica que as revistas ainda conseguem ter num tempo em que, ao que parece, os espíritos mais pessimistas pensam que as revistas em papel estarão condenadas a desaparecer.

Até aqui, tudo bem, considero-me razoavelmente optimista (às vezes, custa, confesso…) e sou e serei sempre acérrima defensora de revistas e livros em “suporte papel” — como agora se diz. Embora não enjeite o on-line, como se prova.

O pior veio a seguir.

Ao explicar a novidade da capa, na horizontal, escrevia-se: “É a única forma de recriar os saudosos postais que, ainda não há muitos anos, serviam para comunicar com os namorados ou com a família quando se rumava ao Algarve para férias.”

Os saudosos postais.

Que ainda não há muitos anos serviam para comunicar.

Ora eu pertenço àquela espécie em vias de extinção (ou se calhar já extinta, eu é que não dei por nada) que ainda dá um trabalhão dos diabos aos correios, onde toda a gente me trata como se fosse da família…

Mando e recebo, normalmente, uma média de cinco postais por dia. Mas há dias em que a safra até dá gosto ver…

Dos sítios mais estranhos e para os sítios mais estranhos (quando, no Natal, mando as habituais encomendas e cartas para o Tchad, ou para o Darfur, por exemplo, há sempre um funcionário que pergunta: “E chega lá?” (E eu digo que sim, que chega sempre, às vezes com mais de um mês de atraso, mas pronto.)

Mas tirando esses destinos estranhos—mando postais para todos os amigos quando estou fora, quando estou de férias, quando eles fazem anos (de idade, de casados, de namorados, de pais, de avós, etc, etc…), no dia do/a santo/a do seu nome, no Natal, na Páscoa, e, sobretudo, quando me apetece. O meu amigo Eduardo, do Porto, ou o meu amigo Manel Freire, por exemplo, pertencem a esse grupo daqueles a quem escrevo (e me escrevem…) apenas porque sim. Que—convenhamos—é a melhor e a mais forte das razões.

E ai dos meus amigos e familiares que não façam o mesmo comigo. A minha amiga Maria, quando está na praia, manda o postal dentro de um envelope—e enfia lá para dentro umas conchinhas minúsculas. O meu querido João, missionário no Tchad, manda-me também o postal em envelope—com areia lá dentro. A Ana Paula manda-o juntamente com folhas secas. E a Cristina, nos postais que me manda lá da ria, nunca se esquece de escrever, em letras bem avantajadas,” beijinhos, Serginho!”—o nome do meu carteiro, que também é nosso amigo no Facebook… E meu querido Ricardo, que anda agora em lua-de-mel, manda-me postais de todas as cidades de Itália por onde passa. Em lua de mel, leram bem????

E lá vou habituando a geração dos netos a fazer o mesmo – como habituei a geração do pai. (Ficou famoso o postal que o meu filho, aos 8 anos, me mandou de Coimbra, onde estava num torneio de xadrez: “Mãe, não tenho nada para dizer. Beijos”).

E, evidentemente, que já tenho uma legião de “agarrados ao vício”. Quando, por qualquer motivo, me atraso a enviar um postal de parabéns—há logo quem mande um SMS a refilar: ”então, o meu postal?” Ou, quando me deixo levar pela facilidade e rapidez de um mail e escrevo meia dúzia de frases, a resposta é sempre “está bem…mas quero postal!”

Claro que o e-mail foi uma grande invenção, como é que podíamos viver sem ele, sem a sua rapidez em mandar mensagens, ou informações, ou avisos, ou perguntas de que necessitamos respostas imediatas.

Mas não consegue criar estes laços que só o contacto físico com o papel consegue.

São os amigos que estão mais perto de nós.

Somos nós que estamos mais perto deles.

Mesmo com skype incluído.

Porque o vidro é sempre frio.

Em breve irás receber um postal desta avó que tanto te ama.

Bjs

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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