visao.sapo.ptsvicente - 26 jan. 14:58

Visão | A omissão é uma arma

Visão | A omissão é uma arma

Tenta alertar para essa outra guerra que não tem drones, nem carros de combate, nem misseis XPTO. Apenas o tempo, a fome e comandados pelo general inverno

O inverno começa agora (sim, só agora) a chegar em força à Bielorrússia.

Se consultarmos os dados meteorológicos de um qualquer site, dirão que hoje estão -2 graus em Minsk, mas nada dizem do frio que se faz sentir na floresta, onde uma das voluntárias das poucas ONGs no terreno fala, não em temperaturas, mas nessa coisa muito mais cortante a que chamamos “sensação térmica”.

“- Temos sempre a impressão de vivermos dentro de frigoríficos.”

Falta tudo: agasalhos, cobertores, água comida. Lenha há muita, mas está húmida, gelada mesmo e só produz fumo sem dar calor.

De há duas semanas a esta parte, já me relatou o nascimento de cinco crianças no meio daquele acampamento improvisado. Destas só duas sobreviveram. Para já!

“ -É a verdadeira seleção natural! – diz.

Porque me contacta a mim? – perguntarão os mais céticos. Desconheço. Sei que não sou a única e que fala com inúmeras organizações e meios de comunicação. .

Isto para não falar dos animais selvagens que rondam sem cessar. Os mortos são enterrados o mais fundo que se pode com as ferramentas que não têm. As sepulturas são cobertas de pedregulhos, tentando dar algum descanso final a corpos que tanto sofreram. Mesmo assim nem sempre são eficazes. Os animais também têm fome.

“Os recém-nascidos são festejados como uma bênção”- conta ela e, aí sim, emociona-se. No meio da dor, do desespero do nada, são pequenas luzes que teimam e teimarão em surgir.

Mas o inverno, o inverno a sério, sabe que ainda está para vir e ao acampamento improvisado vão chegando cada dia mais famílias, a maioria sem homens adultos. São crianças, velhos e mulheres que vagabundeiam à vista da fronteira polaca, esperando um milagre que não chega.

“- Todos os Deuses os abandonaram e nós pouco ou nada podemos fazer.”

Possuindo salvo condutos para atravessarem dum lado para o outro, estes voluntários fazem o que as grandes organizações resistem a fazer, por questões de diplomacia estratégica certamente.

Tenho o maior respeito pela ação diplomática e reconheço (como não?!) o papel extraordinário e eficiente que teve ao longo de toda a História da Humanidade.

Mas neste momento há que ser mais Aristides de Sousa Mendes e menos politicamente correto.

É urgente a intervenção das organizações humanitárias naquela região esquecida na vaga da guerra, mas tão mortífera quanto cruel.

“- Poucos são os que ficam mais que um a dois meses nestas condições. Alguns refazem o caminho que os trouxe até aqui. Outros suicidam-se. A taxa de suicídio entre os mais velhos é bastante elevada.”

A comida é escassa e, à força de comerem toda a espécie de bagas e cogumelos, a morte vai ceifando mais uns poucos.

Falamos e batemos no peito de cada vez que relembramos os campos de extermínio sem nos apercebermos que estamos a repetir, com a maior das levezas, as mesmas atrocidades.

Onde está a Europa? Onde estão as Organizações Humanitárias Internacionais?

Quem enfrenta heroicamente aquele inferno depara-se com todo o tipo de obstáculos mesmo quando pensa já ter ultrapassado o pior.

Há cerca de dois meses foi resgatada uma família de seis pessoas. Foram meses e meses de trabalho, de logística (própria!), de encontros de boas vontades.

Visto de fora, para alguns, foi um acto de lesa status quo, para outros uma felicidade e uma forma de humanismo.

O Governo reagiu depois dum grande esforço conjunto, respondendo à pressão dos grupos de cidadãos. Mas agiu e, quando o fez, foi rápido e envolveu-se com o cunho que lhe está na índole e que assenta nos pilares da liberdade, igualdade e fraternidade.

O problema não ficou, porém ,resolvido. Um pouco por toda a parte são os pequenos poderes, os que se sentem desautorizados no seu pequeno mundo, que colocam o seu grãozito de areia na engrenagem.

A família que tinha já trabalho (e tem!) escola e casa à espera está em risco de tudo perder por falta de comunicação entre os serviços que protelam a emissão de documentos já aprovados.

Entre as crianças que morrem à nascença, os que se suicidam por falta de esperança ou os que desesperam por uma resposta que lhes permita acreditar num futuro, a diferença não é assim tanta.

A comunicação com a voluntária termina sempre com  a mesma frase: “Que Deus nos proteja“ (eu que sou praticamente ateia, vejam bem…).

Porque menor que a fé no Alto começa a ser a fé nos homens e nas mulheres que podem fazer a verdadeira diferença.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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