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Gonçalo Galvão Teles: ″O cinema português está pujante″

Gonçalo Galvão Teles: ″O cinema português está pujante″

"Nunca nada aconteceu" é o novo filme de Gonçalo Galvão Teles, realizador que esteve à conversa com o JN. Das dificuldades da nova geração ao estado atual do cinema português, pouco ficou por dizer.

Já está em exibição "Nunca Nada Aconteceu", de Gonçalo Galvão Teles, um dos muitos filmes portugueses neste momento em exibição. Numa família onde marido e mulher estão de costas voltadas e ele recebe o pai, que chega da aldeia, é o filho do casal que vai envolver-se numa tragédia, na sequência de um pacto com dois amigos, todos eles sem esperanças de futuro. O filme é o último de Filipe Duarte, falecido em 2020, aos 46 anos, e a quem é dedicado. O realizador falou ao JN.

O filme inspirou-se em factos verídicos. Em que medida as pessoas que o viveram foram contactadas?

O filme baseia-se em factos verídicos já distantes, mas esse processo foi feito pelo Luís Filipe Rocha, o autor do guião original. Partiu desse caso para criar a sua ficção. Sei que na altura pesquisou, contactou as famílias, mas sempre com a ideia de ficcionar. Sei que descobriu uns bilhetes, de um rapaz e de uma rapariga. Havia muito pouca informação sobre o caso. Normalmente estes casos são muito silenciados.

O que aconteceu para o projeto mudar de mãos?

O Luís Filipe Rocha estava a desenvolver este projeto connosco, mas a certa altura decidiu deixá-lo. E perguntou-me se eu teria interesse em levá-lo para a frente. Na altura estava em produção do "Soldado Milhões" e achei que poderia ser o meu próximo filme. Mas com a liberdade de partir do que existia para outras coisas.

Quais foram as principais alterações que introduziu no projeto?

Uma das primeiras decisões que tomei foi de não investigar diretamente qualquer caso, nem sequer tentar explicar aquilo que eu não conseguia perceber. Queria apenas sentir o que aqueles jovens poderiam sentir e, com a colaboração do Tiago R. Santos, criar uma ficção em torno de um evento, que espoleta uma história.

As longas-metragens que dirigiu foram em correalização, o "Gelo" com o seu pai, o Luís Galvão Teles, o "Soldado Milhões" com o Jorge Paixão da Costa. Esta acaba por ser a sua primeira grande aventura a solo.

Já tinha havido a experiência do "Teorema de Pitágoras", o telefilme da SIC. Era um telefilme mas filmado com as características de uma longa-metragem, em película, com uma equipa de cinema, um mapa de rodagem muito semelhante ao de uma longa-metragem. Sinto que pus neste filme a energia de um primeiro filme, mas coabitando com a experiência dos projetos anteriores e a maturidade que já tenho.

No filme convivem três gerações. O Gonçalo está mais perto da geração do meio. São os mais novos que espoletam o drama do filme. Como é que se relaciona com essa geração que já não é a sua?

Não é mas continua a ser, através de uma experiência direta. Este filme faz todo o sentido para mim, porque lida com as questões que me acompanharam e me preocuparam no meu crescimento, me preocupam agora enquanto pai e me preocuparão no resto da vida. O guião original do Luís Filipe Rocha era mais centrado na personagem do António, já no último quarto de vida, desenraizado da sua origem rural e que vem para a cidade.

Essa foi então também uma das direções novas do projeto, quando passou para as suas mãos?

Eu decidi focar-me mais nas personagens jovens. Sempre tive um grande fascínio pelas personagens jovens no cinema, nesta fase decisiva e matricial das nossas vidas que é a entrada na idade adulta, em que se define o que somos e o que queremos ser. Esse relacionamento surge muito naturalmente, não só pela experiência passada, das minhas próprias angústias do crescimento, mas também pelas minhas preocupações enquanto pai e professor, que lida diariamente com adolescentes e jovens adultos.

Como é que se processou a escolha dos atores?

Foi um longo processo. Sabia desde o início que era um filme de atores. O tom justo do trabalho dos atores e o desenvolvimento que eles próprios fariam das personagens era a chave para o sucesso do filme ou para poder contar bem esta história. O processo de casting foi longo e maturado, com a ajuda da Patrícia Vasconcelos. E dividiu-se essencialmente em três núcleos. O dos jovens, o dos adultos e o dos secundários. Começámos precisamente pelo dos três jovens.

Como é que os escolheu?

Achei que a chave para o equilíbrio da história era encontrar os três jovens. Fizemos um casting a cerca de 500 jovens, em várias fases, ao longo de três meses, até chegar a estes atores. A Alba Baptista foi mais ou menos imediata, tão impulsiva e instintiva como ela própria é. Na primeira sessão de casting percebi logo que era ela. Até esperei um par de meses para esperar que ela terminasse a primeira temporada da "Warrior Nun".

Os dois jovens são menos conhecidos que a Alba...

O Miguel surpreendeu-me ao longo do processo de casting, pela sua inteligência emocional. Vai ser um dos grandes atores do cinema português. Não só compreende a personagem como traz sempre qualquer coisa de novo. O Bernardo surgiu depois, era um pouco mais velho do que estávamos à procura, mas depois, quer pelo seu talento quer pela proximidade com os olhos da Ana Moreira, acabou por uma escolha natural.

Vemos aqui o último trabalho do Filipe Duarte...

O Pipo era absolutamente definitivo. É um processo já com mais de 20 anos. Entrou no meu primeiro filme, nas minhas duas curtas e tinha uma grande vontade de continuar este trabalho com ele. A minha mãe já disse que ele era o meu eu ficcional, quem eu escolhia para me representar.

O filme é-lhe dedicado, deve ser duro ver o filme agora...

É óbvio que é duro. Quando aconteceu, durante o primeiro confinamento, eu tinha terminado a primeira montagem. Estava a olhar para o filme todos os dias. Na altura foi um processo de questionamento muito grande. Mas senti que ele seria a primeira pessoa a dizer-me para não me atrever a mudar uma palha por causa do que aconteceu. Para levar o filme até ao fim.

O Filipe Duarte, como ator e como pessoa, vai ficar para sempre ligado à sua obra...

Ao longo de 20 anos foi realmente um companheiro. Ao mesmo tempo olho para isto como um privilégio. Uma saudade mas uma sorte muito grande por o ter escolhido para este papel e de ele o ter podido fazer. A mulher dele já viu o filme e disse-me que ele teria adorado fazer o filme. E que estranhou ao ver a dedicatória, porque ao longo daquelas duas horas se tinha esquecido.

A Ana Moreira tem um papel diferente do que nos habituou...

Conhecia-a há muitos anos mas nunca tinha trabalhado com ela, mas tinha vontade. Encontrámo-nos por acaso num festival na Estónia, fomos jantar e quando estávamos a jantar eu estava a ver a Lena. Pela maturidade dela senti que estava preparada para fazer o seu primeiro papel como mãe. Depois veio a fazê-lo no "Sombra".

O Rui Morrison também compõe uma verdadeira personagem...

Eu conhecia-o perfeitamente. É normalmente escolhido para outro tipo de papéis. Tive um projeto com os meus alunos com ele como protagonista e apercebi-me de quanto trabalho ele põe na criação das suas personagens. O Rui é um ator, pode fazer qualquer papel.

A geração dos mais novos no filme está completamente desenraizada, mas a geração seguinte, a do Filipe Duarte e da Ana Moreira, também não tem uma vida melhor. O Gonçalo é um pessimista?

Acho que não. Muito pelo contrário, sou um otimista por natureza. Que acredita que as coisas podem sempre ser melhores. Se calhar é por isso que sinto necessidade de trabalhar estes temas. E estas pessoas que não sentem isso, que sentem esta desesperança. Mas eu acredito profundamente que nós todos podemos ser um bocadinho melhores. Se todos ouvirmos mais, ouvirmos melhor, olharmos uns para os outros e encontrarmos caminhos para uma vida que faça sentido.

Como é que sente os mais jovens, que acompanha enquanto professor?

Constato muitas vezes esta angústia, esta dificuldade. Sentem que as coisas estão difíceis. Já li um estudo que diz que mais de metade da juventude da União Europeia, talvez a forma de civilização mais avançada que conhecemos, com acesso à educação, à cultura, ao lazer, tem medo do futuro e sente que as coisas vão piorar. E o medo nunca foi bom conselheiro. Assusta-me muito que a geração dos meus filhos viva com esta angústia e incerteza e esta permanente insatisfação.

Como é que isso se materializa no seu trabalho?

O meu trabalho não é só retratar aquilo que eu vivo ou a maneira como eu olho o mundo mas, mais pelo contrário, é até olhar para os outros, e tentar perceber, abrir portas, levantar perguntas, não respostas, porque é que as coisas estão assim e como é que podemos olhar para elas de outra forma.

Por coincidência o seu filme estreia no mesmo dia de dois outros filmes portugueses, depois de uma estreia na semana anterior e outras nos dias que se seguem...

Vejo isso com alguma perturbação. É natural que haja algum engarrafamento de filmes que estiveram parados por causa do que aconteceu nestes dois últimos anos, mas ao mesmo tempo parece-nos surpreendente termos marcado a estreia do filme em março e de repente, muito em cima da hora, surgirem dois outros filmes no mesmo dia. Não é bom para ninguém, é uma questão de bom senso. Não há espaço nas salas, nos media e seguramente nos espetadores para cinco filmes portugueses no espaço de dez dias.

O que é que poderia ter sido feito?

Uma vez que a auto-regulação não está a funcionar, isto merece um olhar atento de quem possa, para tentar criar alguns mecanismos para que nós todos possamos ter espaço para existir.

De qualquer forma, é um reflexo de uma certa vitalidade do cinema português...

O cinema português está pujante. Cada vez dá mais mostras da sua diversidade e da sua dinâmica. E desta resiliência que o setor tem tido, de encontrar formas, mesmo nos tempos mais difíceis, de se reinventar, de chegar à frente. De termos uma nova geração, reconhecida, de novos atores a aparecer, de gente com vontade de criar.

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