ionline.sapo.ptRui Patrício - 30 set. 09:53

O/a senhor/a é uma besta

O/a senhor/a é uma besta

Como diria a sábia avó, do alto da sua terceira classe, “dá ao desprezo, filho, dá ao desprezo, que isso é que dói”.

Volta não volta, a respeito do que A disse a B ou disse de B, discute-se a liberdade de expressão, nomeadamente a questão de saber se a mesma – que é um direito fundamental, disso não há dúvidas, desde logo porque assim mandam as Leis Fundamentais – tem ou não tem limites.

Uns dizem que sim, outros que não, outros dizem que depende; sendo que neste último grupo há duas categorias, os que acham que depende consoante concordem ou não com a imputação ou o juízo de A sobre B e os que acham que depende de saber se tal imputação ou juízo implica avançar factos (ainda que sob a forma de suspeita) que sejam suscetíveis de diminuir de forma relevante e não justificada B.

Eu faço parte da segunda categoria, o que significa pelo menos duas coisas: uma, acho que a liberdade de expressão tem limites, como aliás tudo tem, e todos os direitos têm, até a vida; e, outra, tanto se me dá se gosto mais ou menos de A ou de B, e se concordo com um ou com outro, ou com nenhum. Não é esse o ponto, e tenho para mim – e tento – que a liberdade de expressão não é de geometria variável em função de gostos, preferências e preconceitos.

Há imputações e há juízos que são ilícitos, incluindo criminalmente, não sendo juridicamente consentidos pela liberdade de expressão. Cada caso é um caso, e não é fácil tentar traçar uma teoria geral. Mas tentemos, ainda que de forma muito resumida e, por isso, também simplificada. 

Tenho para mim, e acho que a Lei também, que só são ilícitos a imputação de factos fortemente desonrosos ou a formulação de juízos de valor que tenham subjacente ou implícita essa imputação. Tudo o mais é permitido. E o que é fortemente desonroso? Não é aquilo que incomoda ou afeta subjetivamente o visado ou a visada (isso é indiferente para o Direito neste particular, pois aqui não tratamos de sensibilidades ou chiliques).

É, sim, aquilo que aos olhos de quem lê ou aos ouvidos de quem escuta, segundo critérios objetivos e razoáveis, pode acarretar a convicção ou a suspeita de que a imputação, sendo grave, tem base. É aí, e só aí, que pode residir a ofensa juridicamente relevante (se se não provar o fundamento da mesma, claro está). E é, aliás, por isso que acho o crime de injúria (ou o ilícito civil equivalente) um crime teoricamente “tolo”, digamos assim, pois a relação na injúria é bipolar, ou seja, trata-se apenas da relação entre emissor e recetor, e o que se passa aí em matéria de pretensas ofensas é ou deveria ser irrelevante para o Direito.

Já na difamação, onde a relação é pelo menos triangular, a coisa é diferente, pois aí há sempre um terceiro ou mais, e isso é que interessa. Ou seja, em cada caso, a pergunta chave a fazer e a responder é esta: o que eu digo comporta, direta ou indiretamente, a imputação (mesmo que só como suspeita, até porque estas às vezes são tão ou mais letais que o j’accuse) de algo que aos olhos de um observador médio pode merecer credibilidade e, desse modo, acarretar uma diminuição ou depreciação sérias do visado. Se sim, o Direito pode, e deve, intervir, se for chamado a isso. Se não, tanto faz, e estamos no terreno da liberdade.

O que significa que há coisas muito rudes, azedas e/ou “gráficas” que podem não ter relevância jurídica, e outras, até mais subtis, que podem tê-la. Depende do que se escreve ou diz (ou desenha, et cetera), de quem o faz, do contexto (oh, o contexto!) e de mais uma meia dúzia de coisas. Portanto, dizer que alguém é isto ou aquilo pode ser ou não ser ilícito, depende muito. Mas depende sempre e só de juízos objetivos, não de sensibilidades. As sensibilidades ficam para outros ordenamentos que não o jurídico, e no limite é um problema de atitude de cada um, seja como emissor de imputações ou juízos, seja como recetor. 

Eu – em verdade vos digo – tenho às vezes vontade de dizer “o senhor/a senhora é uma besta”. Muitas vezes, até, seja em resposta a algo que me dizem, seja em virtude de coisas que observo, constato ou vivo. Mas não digo, e não é porque me incomode a possibilidade de um processo (ah, isso não me incomoda, embora conheça bem os caminhos ínvios que alguns podem tomar), é apenas por cortesia (e também por falta de merecimento do emissor em alguns casos). A questão resume-se, na maior parte das vezes, a isso: cortesia.

Mesmo que o visado ou a visada, pelo que fez ou disse, não mereça assim tanta cortesia. Mas quase nunca vale a pena responder a uma bestialidade com outra. Cortesia, sim, e indiferença também. Não sei se muita, mas pelo menos alguma. É muito saudável, sobretudo num tempo em que cresce a contagiante peste de gritar, balir e zurrar tudo e qualquer coisa, sem peias. Uma coisa realmente bestial. 

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