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A raspadinha e a avestruz

A raspadinha e a avestruz

Nos últimos anos, tem sido tão galopante quanto preocupante o aumento da dependência em relação ao jogo da raspadinha em Portugal.

Um estudo recente feito pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) conclui que se verificou um aumento acentuado (quadruplicou entre 2012 e 2017) da prevalência de jogo abusivo na população em geral, sendo agora a raspadinha o segundo jogo a dinheiro procurado por mais pessoas no nosso país, a seguir ao Euromilhões. Deste mesmo estudo extrai-se que mais de metade dos apostadores são mulheres, com baixas habilitações e de baixos rendimentos. Um terço dos apostadores ganha mensalmente até 500 euros e metade aufere entre os 501 e os 1000 euros.

Este é um retrato, e é sintomático, de um país com grandes desigualdades, com o elevador social avariado, onde a única perspetiva de ascensão social é o recurso a jogos de sorte ou azar. Azar para quem não tem outra perspetiva de subir na vida e contrariar ciclos de pobreza e exclusão, sorte para o Estado que vai arrecadando milhões em receita destes jogos. Só em 2019 foram 1718 milhões de euros. É, a todos os títulos, inaceitável.

Não deixa de ser insólito que, já sendo públicos alguns destes dados, como as consequências nefastas deste tipo de jogo e do seu elevado grau de adição, a resposta do anterior Governo tenha sido a criação de uma nova raspadinha para subsidiar a recuperação do património cultural. Em termos práticos, esta opção resultou num financiamento da intervenção pública na recuperação deste património cultural por pessoas de baixos rendimentos. O que é uma perfeita subversão de qualquer política pública neste domínio.

Enquanto os poderes estatais vão estando à margem do tema, tem estado bem o Conselho Económico e Social (CES) a trazê-lo para a agenda política nos últimos dois anos. Face às evidências de que há uma maior prevalência junto das classes mais desfavorecidas da população, avançou o CES com um estudo sobre o vício das raspadinhas que deverá estar concluído nos próximos meses. O que se espera, depois, é que o Governo seja, pelo menos, consequente com aquelas que vierem a ser as conclusões deste trabalho de investigação. É o mínimo que se exige.

Que o Estado não se deva comportar como garante da moral e dos bons costumes, estou inteiramente de acordo. Mas isso não deve significar que o Estado se deva eximir de qualquer responsabilidade ou intervenção num flagelo que é, também, manifestamente um problema de saúde pública. Não é aceitável que se comporte como a avestruz, enquanto vai arrecadando receita à conta da miséria alheia.

*Jurista

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