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A história do MPLA, uma larga estrada de ficções

A história do MPLA, uma larga estrada de ficções

Em vésperas de um novo Congresso do MPLA é curioso observar o frenesim para disseminar o maior número possível de ficções sobre o passado heróico e nacionalista da organização.

Em vésperas de um novo Congresso do MPLA é curioso observar o frenesim instalado em todas as esferas de actividade do partido para disseminar o maior número possível de ficções sobre o passado heróico e nacionalista da organização. Não só se recriam velhos mitos, desde sempre colectivamente partilhados, mas outras narrativas fabulosas se forjam ainda mais exaltantes para os seus adeptos.

É aqui que entram em acção os guardiães da ideologia com os seus eficientes instrumentos de controlo sobre as máquinas de propaganda (jornais e televisões) para que nada neste ritual de ficções falhe e se abra um caminho de sucesso para as eleições presidenciais de 2022 que marcarão o ponto culminante de consagração universal do seu candidato.

O ungido do Congresso, mais uma vez, na ausência de um referendo interno, é o general João Lourenço. No entanto, para que a sua sagração seja convincente, tintas de fantasia, em grandes quantidades, se têm gasto num esforço coordenado para fazer acreditar à massa militante que o general é genuinamente o grande depositário das virtudes do MPLA. Não há outro que se lhe iguale, é o espírito mais vigoroso para continuar a defender a tribo partidária e os superiores interesses da sociedade angolana. É um democrata de coração e, pelo talhe da sua personalidade, o herdeiro providencial das mais brilhantes tradições desta organização desde que Agostinho Neto em Dezembro de 1962 tomou democraticamente em mãos a chefia do MPLA na I Conferência do então movimento guerrilheiro.

Foto Viktor Safonkin, A Crucificação, 2006

Realmente as cordas da ficção não têm parado de ser esticadas pelos escribas sentados do Partido, sempre prontos a acatar e a cumprir qualquer ordem por mais absurda e imoral que seja. Nenhum sentimento de recato e de respeito pela realidade dos factos os embaraça, tanto que não se fazem rogados em reinventar o passado a partir de criações imaginárias perigosas para o conhecimento humano. Por exemplo, que Neto se fez eleger na Conferência em ambiente de perfeita tolerância entre os seus membros ou em clima de forte coesão em torno dos projectos de luta. O que, na linguagem de um escriba do Jornal de Angola, significou um acontecimento ímpar na história do MPLA e um marco comprovativo de quão forte e “pioneira [era] a democracia interna no seio de um movimento político tão unido na sua diversidade”.

Não tem o mínimo fundamento a versão de que a Conferência do MPLA em 1962 foi marcada pelo signo da democracia. Absolutamente falso. A Conferência redundou, pelo contrário, numa crise sem tamanho e soçobrou num banho de sangue, abrindo os piores presságios para o futuro

Sabemos o efeito entorpecente causado pela mentira e quanto ela pode ser devastadora como uma droga em determinadas circunstâncias, especialmente se os seus receptores forem pessoas ingénuas, vulneráveis ou ignorantes e tenham do mundo um entendimento precário assente em crenças disparatadas. Ou ainda se forem pessoas que, pelo seu grande número, são leais ao MPLA e susceptíveis de acreditar em qualquer coisa divulgada pela sua facção partidária. Por isso, mentir desta forma, deturpando de caso pensado a história é grave e lastimável, espelho da falta de dignidade num Partido que já concitou mais apreço. Realmente não tem o mínimo fundamento a versão de que a Conferência do MPLA em 1962 foi marcada pelo signo da democracia e que os princípios de igualdade e liberdade balizaram todo o percurso histórico daquela organização política. Absolutamente falso. A Conferência redundou, pelo contrário, numa crise sem tamanho e soçobrou num banho de sangue, abrindo os piores presságios para o futuro.

Desde o início da Conferência, Neto deu de si uma nota inconfundível, a intenção de usurpar o poder supremo. O encontro durou apenas três dias, mas, ao invés de resolver uma série de problemas que vinham de trás, como a situação interna de fraccionamento do Movimento em duas alas contrárias, a de Neto e a de Viriato da Cruz que se digladiavam e trocavam acusações mútuas, Neto fez o impensável para descartar este imbróglio. Só uma preocupação o excitava, a tomada rápida do poder. E assim o fez, inflamado pela sua vontade dominadora. Ainda a Assembleia não se tinha debruçado sobre a eleição do novo Comité Director, e muito menos sobre a eleição do seu presidente, e já Neto ameaçava os seus companheiros. Não só rejeitou a inclusão do nome de Viriato da Cruz na sua própria lista, como constrangeu todos os companheiros a banir o ex-secretário-geral do escrutínio. A quantos se opuseram a este modo de proceder ordenou que saíssem da sala como se já estivesse investido do poder majestático.

Neto aproveitou este estado de choque para, com o apoio de uma fracção de incondicionais, se fazer aclamar presidente e em jeito de aviso à navegação foi logo anunciando sem rodeios: – “Se vocês não querem mandar, vou eu mandar em meu nome pessoal”

Num instante se instalou o maior rebuliço com os militantes divididos entre si. Muitos, agastados com tamanha prepotência, retiraram-se. Neto aproveitou este estado de choque para, com o apoio de uma fracção de incondicionais, se fazer aclamar presidente e em jeito de aviso à navegação foi logo anunciando sem rodeios: – “Se vocês não querem mandar, vou eu mandar em meu nome pessoal”. João Baptista de Castro Vieira Lopes, médico já falecido, presente na Conferência, conta ainda que “[…] aquilo não caiu bem. Eu saí do Comité Director, houve uma minoria de simpatizantes ou aderentes de Viriato que não participou e saiu também. Eu não era aderente, mas achava que aquilo não era correcto, logo naquele momento histórico que estávamos a viver”[1].

Louco ou não, a ambição desmedida de Neto fê-lo presumir-se o mais inteligente, o mais capaz, um semi-deus e, nessa condição, um ente predestinado a dirigir e a governar aqueles homens insignificantes. Com este acto de afirmação ditatorial acabara de se instalar no meio daquele núcleo de militantes o conformismo e a submissão total ao poder de Neto com impacto profundo na vida e no espírito da manada.

Neto entrou naquela assembleia feito um lobo no meio de ovelhas. Colocou-se por cima da massa e depreciou-a. Também Hitler, ao ingressar em 1919 no pequeno partido com o qual arrebatou o poder na Alemanha, de imediato promoveu os meios necessários para tomar o seu controlo absoluto. Seis anos mais tarde, a 25 de Fevereiro, irrompeu numa famosa cervejaria de Munique onde líderes políticos de outros partidos promoviam um encontro e desencadeou uma espécie de golpe de Estado: apropriou-se da reunião, reafirmou a sua liderança sobre o partido nazi e declarou que já estava formado um governo do Reich encabeçado por ele.

No presidente do MPLA entroncavam as piores características pessoais. Como escreveu um dos seus antigos vassalos, ele estava “absolutamente convencido de que nascera e estudara para ser o libertador de Angola”

Émile Cioran, filósofo romeno (1911-1995), num dos seus escritos mais estimulantes, Escola dos Tiranos, declara que proceder diferente significa “[…] sabotar a profissão, desacreditar a tirania”[2]. Neto pertenceu de corpo e alma à confraria dos déspotas, ele simbolizou essa “ideia de personalidade” (o grande indivíduo) de que fala o pensador alemão Oswald Spengler, que desponta obscuramente mas cuja relação com os restantes membros da organização é pautada por uma sucessão de grandes conflitos que vão crescer até a um “nível trágico”[3]. No presidente do MPLA entroncavam as piores características pessoais. Como escreveu um dos seus antigos vassalos, ele estava “absolutamente convencido de que nascera e estudara para ser o libertador de Angola”[4]. Nesse sentido, não deslustrou a profissão de político invejoso, mendaz e sombrio, sempre pronto a ferrar as suas garras nos rivais. Antes refinou os seus métodos. Nada o detinha na estratégia de deslegitimar e desfazer-se dos companheiros da luta armada que lhe fizessem frente.

Todos se ajustaram aos padrões de conformismo e indiferença impostos por Neto e cobardemente se auto-amordaçaram. O medo tomou o lugar da camaradagem.

Este retrato de Neto é tão verosímil que logo ali, naquela Conferência, ele se revelou possuidor de uma sabedoria malvada com a qual impulsionou um processo político destruidor tendente a fazer desaparecer os seus émulos, justiçando-os como se fossem bandoleiros. Esta tendência perniciosa abateu-se tragicamente como um rio impetuoso sobre os destinos do MPLA, como iria suceder pelos anos fora. Incendiou uma tensão de grandes proporções sem que ninguém nas instâncias do poder fizesse o mínimo esforço para a contestar. Todos aceitaram as cloacas do poder egomaníaco de Neto e passaram a respirar os seus ares pestilentos; todos se ajustaram aos padrões de conformismo e indiferença impostos por ele e cobardemente se auto-amordaçaram. O medo tomou o lugar da camaradagem.

Numa palavra, todos permitiram que Viriato fosse sacrificado e eliminado da organização nacionalista por vontade de um só homem; todos se esqueceram do estatuto do ex-secretário-geral que, nas palavras do médico Edmundo Rocha, fora “um dos edificadores do MPLA, um militante autenticamente revolucionário e um homem que se entreg[ara] totalmente à luta pela libertação de Angola […]”. A sua destruição às mãos de Neto obedeceu inequivocamente a interesses espúrios, a uma política cínica de bode expiatório, nada consentânea com a “integridade ideológica e a orgânica do MPLA”[5].

No meio desta irrupção de histeria e vassalagem ao novo ditador, faça-se jus a meia dúzia de figuras da intelligentsia do MPLA que, longe de se intimidarem, se manifestaram discordantes com a nova orientação programática de Neto

No meio desta irrupção de histeria e vassalagem ao novo ditador, faça-se jus a meia dúzia de figuras da intelligentsia do MPLA que, longe de se intimidarem, se manifestaram discordantes com a nova orientação programática de Neto que preconizava a constituição de uma força política moderada, expurgada de personalidades radicais (nos antípodas, portanto, do socialismo progressista de Viriato). A discordância nesta circunstância singularizou-se por os seus protagonistas se terem retirado do Partido e se auto-desterrarem na Argélia. O médico Carlos Pestana, uma das figuras em questão, percebeu em Neto desde a primeira hora um indivíduo possuidor de uma fauce perigosa pronta a devorar como Polifemo os seus críticos e opositores. Exilou-se numa vila a 60 quilómetros da capital argelina.

Finalmente, a 7 de Julho de 1963 o punho vingador de Neto abateu-se pesadamente e quase mortífero sobre Viriato, sobre Bernardo Domingos e sobre dezenas de outros militantes. Preso durante a noite na pensão onde se hospedava em Léopoldville, Viriato foi submetido às piores vexações e espancamentos pelos esbirros de Neto. À vista de toda a gente, a milícia do MPLA não teve o menor lampejo de respeito para com o antigo secretário-geral. Manuel dos Santos Lima, no comando da matilha, avançou sobre Viriato e arremessou-lhe os óculos ao chão e esmagou-os com o peso das suas botas, enquanto com um “ódio animal nos olhos” praguejava: – “É este o comunista, batam-lhe mais”, dirigindo-se aos guardas congoleses que o acolitavam naquela orgia de violências. Estes, despidos de contemplação, arrastaram Viriato à força de empurrões e pontapés, ao mesmo tempo que lhe descarregavam coronhadas nas costas e no peito, obrigando-o a permanecer de joelhos no chão.

“[...] depois mandaram agarrá-lo: ninguém queria acreditar no que via. Uma discussão entre intelectuais dirimida a chicote! Viriato sangrava por todos os lados. Tiraram-lhe as cordas e ele rastejava tentando levantar-se. Continuou a ser sovado até pedir perdão”

Revela uma testemunha destes episódios dantescos que Agostinho Neto e Iko Carreira presentes àquele festim de brutalidades se limitavam a sorrir ante o sofrimento de Viriato; “[...] depois mandaram agarrá-lo: ninguém queria acreditar no que via. Uma discussão entre intelectuais dirimida a chicote! Viriato sangrava por todos os lados. Tiraram-lhe as cordas e ele rastejava tentando levantar-se. Continuou a ser sovado até pedir perdão”[6].

Jordão Teixeira de Aguiar, ao tempo presidente da juventude do MPLA (e uma das vítimas dessa espiral de “limpeza” interna), conta que naquela fatídica noite de Julho Luís de Azevedo Júnior, outro obediente lacaio de Neto, se deu a conhecer como um dos piores arcanjos de terror. Qual um “endemoninhado dostoievskiano”, ele próprio se encarregou de moer Viriato com uma roda de pontapés e bofetadas. Despudoradamente despejou os seus camaradas perseguidos no tenebroso Campo congolês de Lufungula, verdadeiro cemitério silencioso da sua população carcerária; não sem antes recomendar ao capitão da gendarmaria que os trancasse nas piores enxovias. Isto é, nas celas mais insalubres e acanhadas onde mal podiam sentar-se e respirar. Viriato ficou sequestrado pelo espaço de dois dias exposto aos ultrajes mais aviltantes e quase pereceu triturado de pancada pelos agentes da polícia congolesa.

Estavam criados os primeiros demónios nas entranhas do MPLA. Correlativamente plasmava-se o medo como técnica de conduzir aquele exército de guerrilheiros. “Ainda não estamos independentes e já se fazem estas coisas!”, eis uma frase emblemática e premonitória proferida então por Viriato enquanto languescia na prisão

Repare-se que toda esta cadeia de acontecimentos se desencadeou num curto lapso de tempo, apenas sete meses após Neto ser entronizado na presidência do MPLA. Podendo neste caso dizer-se, depois desta página de sangue e opróbrio – a primeira no historial político do MPLA –, que nascia uma nova relação de forças. Neto emergia em absoluto com uma nova fisionomia, transfigurado. Agora o Chefe, o escolhido, era ele que chegara para, à luz da violência simbólica, instaurar o paradigma de uma nova ordem interna e experimentar o sabor de um total poder sobre o rebanho.

Estavam, pois, criados os primeiros demónios nas entranhas do MPLA. Correlativamente plasmava-se o medo como técnica de conduzir aquele exército de guerrilheiros. “Ainda não estamos independentes e já se fazem estas coisas!”, eis uma frase emblemática e premonitória proferida então por Viriato enquanto languescia na prisão. Por ironia do destino abria-se naquela hora de incertezas um novo capítulo, um novo tempo histórico para o MPLA. Despontava o tempo messiânico de Neto e, com ele, irrompia também um sintoma tão sombrio quanto assustador. Acabara de nascer o futuro ditador. Acabara de nascer no Movimento uma nova genética, a “genética do canibalismo político” pelo qual Neto se impôs aos seguidores exactamente pela manipulação e pela ameaça.

[1] «Memórias de um Guerrilheiro, Médico e Humanista. O Legado de João Vieira Lopes é um Hino à Verdadeira História» [entrevista a Carlos Ferreira “Casse” e Cristina Pinto], Novo Jornal [Luanda], n.º 226, 18 de Maio de 2012, p. 18.

[2] Émile M. Cioran. História e Utopia [prefácio de José Thomaz Brum], Rio de Janeiro, Rocco, 2011, p. 53.

[3] Oswald Spengler. El Hombre y la Técnica: Contribución a Una Filosofía de la Vida, Bilbao, Espasa Calpe, 1932, p. 22.

[4] “Iko” Carreira. O Pensamento Estratégico de Agostinho Neto. Contribuição Histórica [prefácio de Fernando Costa Andrade (“Ndunduma”], Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1996, p. 40.

[5] «Carta de Edmundo Rocha ao Comité Director do MPLA [dactilografada], Léopoldville, 31 de Outubro de 1962». In: Um Amplo Movimento… Itinerário do MPLA Através de Documentos de Lúcio Lara, vol. 2 (1961-1962), Luanda, Edição Lúcio Lara, 1.ª edição, Dezembro de 2006, pp. 482-483.

[6] AN/TT. PIDE/DGS. Serviços Centrais, 5768 – CI (2), NT 7402, «Diário da Manhã, declarações de Henrique de Guise, 18 de Maio de 1968», fl. 11. A entrevista pode ser lida outrossim na revista Notícia [Luanda], n.º 336, 14 de Maio de 1966, sendo entrevistador o jornalista João Charulla de Azevedo que escreveu a matéria «Notas Várias».

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