visao.sapo.ptfilipeluis - 27 out. 20:02

Visão | Requiem pela geringonça

Visão | Requiem pela geringonça

No final da história, nem Jorge Palma, nem José Mário Branco, nem Luís Cília terão sido os compositores mais indicados ara compor o requiem da geringonça. No dia em que António Costa perdeu os seus “dois amores”, essa tarefa devia ter ficado reservada para Marco Paulo

Nem Jorge Palma, citado por António Costa, nem José Mário Branco, invocado por Marta Temido, nem Luís Cília, autor do hino do PCP, também trazido ao hemiciclo pelo deputado do PS Ascenso Simões, esperariam ser os involuntários músicos do último requiem da “geringonça”: a um mês de completar o seu 6.º aniversário, a solução política à esquerda, inventada por António Costa e formalizada, na primeira legislatura do Governo PS, em posições conjuntas escritas e assinadas separadamente entre PS e PCP, PS e PEV e PS e BE, a coligação informal desfaz-se com estrondo. A lei do Orçamento do Estado para o exercício de 2022 foi chumbada, na votação parlamentar. E o Governo cai.

Nada, na Constituição, obriga à demissão do primeiro-ministro ou à dissolução da Assembleia da República, mas o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, procurando colocar pressão sobre os negociadores, já tinha garantido, antecipada e reiteradamente, que, caso o documento fosse rejeitado, dissolveria a Assembleia da República e convocaria eleições antecipadas. Talvez por isso, depois de uma manhã de debate em que a tensão, sentida no ar desde a véspera, teve a sua catarse, fazendo estalar o verniz entre a líder parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes, e o seu homólogo do Bloco, Pedro Filipe Soares, o primeiro-ministro fez um discurso já apontado para a campanha, aproveitando o púlpito do Parlamento para o seu primeiro comício. De manhã, perante este divórcio litigioso, o “tribunal de família” parlamentar assistiu à revelação dos segredos de “alcova política”, entre o PS e o BE. À tarde, ao reiterar a sua frustração por este desfecho, afirmando, mesmo, que se trata de “uma derrota pessoal”, por ter sempre acreditado nesta solução, não por razões circunstanciais, mas por convicção, Costa declarou: “Nasci à esquerda e a esquerda é a minha família”. Com estas palavras, o líder do PS procura comover os corações do povo de esquerda, que nunca desejou este divórcio e que, no entendimento do secretário-geral do PS, estará dececionado com o Bloco e com o PCP. Pois bem, disse Costa em entrelinhas muito visíveis, “aqui me têm, sou um dos vossos, podem, da próxima, votar PS”. Essa pedra de toque para a campanha continua quando Costa se identifica com a suposta desilusão dos “2 milhões e 740 mil eleitores que, em 2019, votaram na continuação da geringonça”. Mas a grande novidade deste discurso de encerramento do debate pode ter surgido através de uma curiosa ambiguidade: António Costa, aproveitando para sublinhar a sua faceta otimista, acredita que esta vitória da direita – à qual encostou BE e PCP… – será pírrica. E que espera voltar, depois de eleições, com uma nova maioria. Uma maioria do PS, sozinho, ou Costa estará a entreabrir a porta à construção de uma nova geringonça?…

Costa já começou a “roubar” votos a BE e PCP: “Nasci à esquerda e a esquerda é a minha família”. O primeiro comício da campanha

Esta manhã, na newsletter diária da VISÃO, enviada aos nossos assinantes – e cujo título era “O dia em que as vacas deixaram de voar” – tive oportunidade de escrever o seguinte:

“O esgotamento da fórmula da geringonça pode tornar-se o esgotamento de António Costa. A nova situação não estimula, apenas, a presente reconfiguração à direita: terminado este ciclo, é expectável que o PS pense na sua própria reconfiguração. Numa fuga em frente, a única possibilidade de Costa continuar a comandar o partido e o País é conseguir, nas prováveis legislativas do início do próximo ano, a maioria absoluta. É que, reerguido o muro à esquerda, persiste aquele que Costa, tijolo a tijolo, construíu à direita, ao descartar o PSD de todos os entendimentos. Talvez por isso, antes do início do debate de ontem, e trabalhando para um futuro incerto, o ministro Pedro Nuno Santos foi visto a conversar – a confraternizar? – com as bancadas da esquerda parlamentar. Ele sabe que o PS não pode continuar nisto. Ou vira à direita, ou vira à esquerda – com ele. Mas a sucessão não será natural nem fácil: esgotada a geringonça, é inevitável que, na discussão estratégica futura, apareça um candidato de que, neste momento, ninguém está à espera. Um militante com o perfil de um Sérgio Sousa Pinto, por exemplo, para romper com a lógica dos últimos oito anos. E que faça da atual “minoria silenciosa” do partido uma ruidosa maioria. O cheiro do poder permite todos os flic flacs.”

Claro, acrescente-se agora, que uma possível reconfiguração do PS só será possível a médio prazo, mas Costa parece disposto a transferi-la para o longo prazo – ou mesmo adiá-la sine die. Renovando, desta forma, uma sua antiga afirmação, a de que não vai já “meter os papéis para a reforma”. É que, se voltar ao governo, em 2022, a perspetiva é a de uma legislatura de quatro anos, o que dá 2026 – ano de presidenciais… Quem disse que estava a pensar retirar-se em 2023?…

O líder do PS quer voltar, com uma nova maioria. Quem disse que pretende retirar-se em 2023?…

No debate, alguns dos que citaram o nome de Mário Soares deviam ter, primeiro, lavado a boca com sabão. Mas se o antigo Presidente da Repúbica foi convenientemente reclamado pela direita como “um exemplo”, o atual Presidente lançava a confusão, não resistindo a uma recaída de maquiavelismo: no momento em que se discutia o Orçamento de Estado, no Parlamento, o PR recebia, em Belém, o challenger interno do líder da posição, o candidato à presidência do PSD, Paulo Rangel. Apanhado de surpresa, o último a saber, Rui Rio, ficou sem palavras. Com o PSD “em obras” – na feliz expressão de António Costa – o Presidente deverá esperar que PSD e CDS resolvam os seus problemas, escolham as suas lideranças, componham as suas listas de deputados – para as quais há prazos apertados… – preparem os seus programas e montem as suas campanhas. Esse calendário terá sido, discutido, em Belém, com Paulo Rangel – em vez de com o líder do PSD… – por um Presidente que não só é oriundo do mesmo partido como foi seu líder. Se Marcelo não tiver pressa na convocação de eleições e as atirar para fevereiro, muitos concluirão que apoia a candidatura do eurodeputado social-democrata. Não porque esse “adiamento” não tenha lógica, mas pela humilhação a que esta audiência em Belém sujeitou Rui Rio. E isto até pode revelar-se contraproducente para Rangel.

No seu “momento Américo Tomás”, enquanto decorria a votação do Orçamento, Marcelo condecorava, na fábrica da Renault Cacia, o sr. Hipólito…

Depois disso, no seu “momento Américo Tomás”, pouco antes da votação na AR, Marcelo foi apanhado, pelas câmaras da CMTV, a proferir um discurso nas instalações da fábrica da Renault Cacia e a condecorar o sr. Hipólito, um dos seus mais antigos trabalhadores… O teatro do absurdo também faz parte destas movimentações, concedamos. E a sátira também. Nem sequer faltou o apimentado discurso do líder parlamentar do PSD, Adão Silva, uma intervenção demolidora e escria à maneira da velha tradição da picardia parlamentar oitocentista, com o seu humor popular – “ o pântano deixa-nos de pantanas”… – e até a ferroada cínica (e, quiçá, certeira): “O fim da geringonça não deixa o senhor primeiro-ministro frustrado: deixa-o aliviado…”

No final da história, nem Jorge Palma, nem José Mário Branco, nem Luís Cília terão sido os compositores mais indicados para compor o requiem da geringonça. No dia em que António Costa perdeu os seus “dois amores”, essa tarefa devia ter ficado reservada para Marco Paulo.

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