expresso.ptexpresso.pt - 28 set. 20:41

“Uma coisa é clara: os salários não podem ser cortados”: entrevista com o comissário europeu vai apresentar proposta sobre salário mínimo

“Uma coisa é clara: os salários não podem ser cortados”: entrevista com o comissário europeu vai apresentar proposta sobre salário mínimo

Comissário europeu do Emprego e Direitos Sociais vai apresentar uma proposta sobre salário mínimo a 28 de Outubro. Não haverá um valor para todos os países, antes um sistema e um enquadramento para que os países aumentem os valores por si

Nicolas Schmit falou com o Expresso depois de fazer uma ronda por responsáveis portugueses antes de apresentar a proposta europeia sobre o salário mínimo. O comissário europeu do Emprego e Direitos Sociais reconhece as limitações da Comissão Europeia no que a salários diz respeito, mas acredita que o sistema que vai criar vai permitir que os rendimentos aumentem na Europa. Os salários vão estar no centro das discussões, a par da política financeira e orçamental, defende.

Esta crise terá um impacto como nenhuma outra. No discurso do Estado da União, a presidente Ursula Von der Leyen disse que esta era a altura de a Europa agir em questões como trabalho, saúde, direitos sociais. Esta resposta é uma espécie de mea culpa pela resposta à crise de 2010?
Posso dar-lhe a minha visão pessoal porque era ministro naquela altura. Sempre fui muito crítico da forma como a crise foi gerida. Digo isto de forma muito aberta. A maneira como esta Comissão está a lidar com a crise e com as consequências da crise é bem diferente, foi uma lição aprendida. Só posso ver esta resposta com bons olhos. Estamos numa crise muito difícil, diferente da anterior, mais complexa e com diferentes impactos nos países. Acho que a maneira como estamos a planear as soluções e como queremos que a Europa reaja é, para mim, diferente do que foi antes e eu só posso apreciar essa decisão.

Estamos a falar agora do Plano de Recuperação e Resiliência. Qual vai ser o seu papel neste plano?
A dimensão social, a dimensão dos direitos sociais, da igualdade, estão muito presentes na visão de como o Plano de Recuperação e Resiliência deve ser implementado e de como os planos nacionais devem ser formulados e apresentados. É muito claro que quando falamos de recuperação, económica e social, estamos a lidar com emprego. E resiliência é também sobre a dimensão social.

A presidente Von der Leyen disse, no mesmo discurso, que tem de se começar a pensar nas competências europeias no domínio da saúde. Tendo em conta que esta é uma crise muito severa no que diz respeito aos direitos sociais e trabalho, a União Europeia deveria também repensar as competências neste domínio?
Estamos a enfrentar algo que nunca vivemos antes. O que temos de garantir é que temos cooperação forte entre estados-membros neste campo, quando estamos a enfrentar uma pandemia como esta. Não tínhamos as ferramentas para enfrentar esta crise e percebemos agora que a pandemia não tem fronteiras. Temos de ter sistemas nacionais mais fortes e também temos de ter cooperação forte onde é precisa, seja na investigação, nos equipamentos... em muitas áreas. A resposta tem de ser melhor coordenada. Estamos a aprender com a experiência e temos de refletir.

Portugal vai estar na presidência da União Europeia no próximo ano. Que papel irá desempenhar na sua estratégia para o salário mínimo e também no plano de ação para o pilar dos direitos sociais?
Estamos já a trabalhar bastante com o governo português. Falou do salário mínimo, a proposta vai sair no fim de Outubro. A primeira discussão vai acontecer durante a presidência alemã e a negociação vai ocorrer, espero, durante a presidência portuguesa. E o Governo português está empenhado em ter avanços neste assunto importante. Estou muito confiante que Portugal irá lidar muito bem com este assunto.

E quanto à implementação do pilar dos direitos sociais?
Estamos a trabalhar com o Governo português na preparação da Cimeira dos Direitos Sociais que irá acontecer em Maio, no Porto. E deve ser um compromisso muito forte na implementação do pilar num contexto económico difícil. Temos de trabalhar nas respostas sociais correctas neste complexo contexto económico em resposta à pandemia, mas como lidamos socialmente com as grandes transformações e transições, digitais e climáticas. A transição estará também no coração desta cimeira.

O que podemos esperar da proposta de enquadramento do salário mínimo? E quando? É só um enquadramento? Há várias realidades na Europa, países com salário mínimo outros que têm por setores em negociação entre sindicatos e patrões. Como vai ser possível um salário mínimo?
A proposta será apresentada a 28 de Outubro. Será um enquadramento. Não será um salário mínimo europeu para todos os países. Os países que têm salários mínimos têm valores muito diferentes, com um grande intervalo entre si. Depois há países que não têm, não vamos obrigá-los a criar um. Há países que têm como base uma negociação coletiva e será parte desse instrumento [que iremos criar]. Temos o tratado que impede a Comissão de impor salários aos estados-membros, vamos respeitar isso. Por isso criamos um quadro para a convergência social e económica e dizemos que tipo de convergência queremos. Criaremos um sistema de monitorização onde estes aspetos podem ser seguidos e haverá diálogo com os países e com parceiros sociais. Procuraremos indicadores para acompanhar a evolução dos salários mínimos, as adaptações regulares... isto são todos instrumentos. E teremos um artigo para promover e fortalecer o diálogo social e a negociação colectiva. Não podemos fazer mais do que um sistema.

Como é que uma diretiva que é um enquadramento, uma estrutura, pode ser efetivo e eficaz para aumentar os salários mínimos?
Acredito que, precisamente porque criamos esta estrutura, obrigaremos os países a ter mais atenção à evolução do salário mínimo. Quando falamos em convergência social, é um assunto para cada país, mas é também um problema coletivo. Salários baixos não podem ser o elemento principal da competição dentro da Europa. Se tivermos salários mesmo baixos numa parte da Europa isso terá impacto noutras partes. Esta é a primeira vez que teremos esta visão sobre os salários.

Portanto, é apenas uma declaração política?
Não é apenas uma declaração política. É um processo onde os estados-membros e os parceiros sociais estarão envolvidos onde a discussão sobre salários e sobretudo sobre salários mínimos terá mais atenção. Olhamos para as finanças públicas, para políticas macroeconómicas, mas não olhamos mesmo para os salários no centro do debate. Os salários são parte da procura e elemento central no debate em torno da justiça social. A pobreza dos trabalhadores é um problema agora. A produtividade também. Temos de investir nas pessoas, nas suas capacidades, não é para manter os salários o mais baixo possível. É aumentar a produtividade do trabalho investindo nas pessoas. Temos de criar incentivos para empresas e países para investir nas pessoas. Mas os salários são um fator para ajudar as pessoas a terem uma vida digna. É uma abordagem complexa num espaço limitado de competências.

Frans Timmermans tinha uma proposta que defendia que o salário mínimo deveria ser no mínimo 60% do salário mediano. Esta proposta faz sentido? É uma proposta deste género que podemos esperar?
Essa foi uma fórmula política. Mas quando olhamos mais de perto ao que acontece na Europa, temos países em que o salário mínimo está perto dos 60% e outros mais baixos. A abordagem tem de ser mais complexa do que só usar um indicador, como os 60%, que é o critério para o risco de pobreza. Depende de outros fatores, temos de alargar a abordagem e incluir outros indicadores para perceber o que se passa nos diferentes estados-membros.

Portugal é um dos países com mais trabalhadores a ganharem o salário mínimo e este é muito baixo. Mas é também um dos países em que o salário médio e mediano é mais próximo do mínimo...
O nível do salário mínimo é o 11º ou 12º na União Europeia. Não é o mais baixo. As pessoas considera-o baixo e o Governo tem o programa para o adaptar regularmente - mas quando se compara com outros, é um pouco melhor que o médio. É um assunto complexo. Temos de ter os indicadores correctos para a discussão, não podemos apenas impor coisas aos estados-membros, não temos essa possibilidade, não é a nossa competência e não o queremos. Contudo, temos de ter um sistema positivo para monitorizar o salário mínimo tendo em vista a convergência social, convergência de salários e assegurar que os salários e os salários mínimos asseguram uma vida digna e é esse um dos objetivos do tratado. E, como último ponto, encorajar e fortalecer a negociação colectiva, que, em alguns países é fraca.

O que pode Portugal ganhar com esta proposta, porque Portugal está próximo dos 60%. Como vai evitar que esta proposta tenha uma espécie de efeito perverso em alguns países?
Não sei bem o que se quer dizer com ter um efeito perverso.

Alguns partidos, como o PCP, alegam que esta proposta pode ter um efeito perverso nos países que estão mais perto da média, ou seja, que em vez de levar a que subam os salários, possam manter-se.
Não é a nossa intenção [não aumentar salários]. A nossa intenção é aumentar a convergência por cima. Não vou criar um instrumento para que alguns países digam que o salário mínimo é muito alto. Pode ter acontecido no passado, mas isto é uma mudança do que aconteceu anos atrás.

Em Portugal discute-se o aumento do salário mínimo. É um bom momento para aumentar o salário mínimo, no meio de uma crise social e com o aumento do desemprego?
Estamos numa crise com diferentes dimensões e uma é a procura na economia. Não é apenas uma crise do lado da oferta. O salário mínimo desempenha um papel no lado da procura, porque se não há procura, se não houver perspetiva para as empresas produzirem. É preciso ver isto num cenário macroeconómico mais extenso. De todas as maneiras, não vou dizer que o salário mínimo deve crescer X%. Uma coisa é clara: os salários não podem ser cortados. Não estou a falar de seis meses, mas de uma perspectiva de longo prazo

É interessante o que está a dizer porque várias vezes, desde 2016, a Comissão Europeia tinha reservas sobre o aumento do salário mínimo em Portugal. É um discurso diferente. As reservas da Comissão não faziam sentido?
Não quero debater o que a anterior Comissão defendia. Esta Comissão tem no seu programa que quer um sistema para o salário mínimo e Von der Leyen disse muito claramente que quer restabelecer o valor do trabalho: 'quero que as pessoas que trabalham na Europa tenham uma vida decente'. Por isso vamos criar um enquadramento para encorajar isso mesmo e o que foi dito no passado, em diferentes contextos, não é um problema nosso. Temos de ser ambiciosos, mas realistas, porque a nossas competências nesta área são limitadas, mas temos de lidar com os salários e sobretudo com os salários mínimos na Europa. Não estamos a impor, mas a criar um verdadeiro diálogo entre países e parceiros sociais sobre este problema. O que aconteceu antes foram tempos diferentes, ideias diferentes, mas as coisas têm de mudar.

Acredita que os cidadãos europeus olham para a resposta europeia, desta vez, com bons olhos?
Espero que sim. Estamos a trabalhar nisso. Muitas vezes a UE recebe a culpa por coisas pelas quais não é responsável. Temos de ter uma Europa mais forte, estados-membros e cidadãos mais fortes. As pessoas têm de perceber que a UE se preocupa com elas, com as suas condições de vida e também com os seus salários de uma maneira que as leve a entender que a Europa é boa para todos.

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