www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 6 jul. 15:27

A incompatibilidade entre morte e a cura. Para onde caminha a (nossa) vida?

A incompatibilidade entre morte e a cura. Para onde caminha a (nossa) vida?

Eu tenho um cão. Começar assim pode parecer disparatado mas vivo com uma cadela que o confinamento mudou. Pela sua juventude, passou uma parte da vida em confinamento e outra a desconfi(n)ar. - Opinião , Sábado.
Eu tenho um cão. Começar assim pode parecer disparatado mas vivo com uma cadela que o confinamento mudou. Pela sua juventude, passou uma parte da vida em confinamento e outra a desconfi(n)ar. Antes passeava orgulhosa e feliz, hoje tem medo dos ruídos e das m��scaras. Moro numa vila que durante três meses foi praticamente nossa e frequento uma praia que, nesse período era nossa e de mais alguns cães. Eram muito poucas, as pessoas e ainda menos, os automóveis. Os sons da urbanização desapareceram e também eu me habituei a uma estranha calma, ouvindo os pássaros durante todo o dia.

Relacionado Sem fotografar o mundo fica por documentar? Desconfinar, ver o mar e aprender a olhar Racismo em Portugal: seremos assim tão diferentes? Veio o desconfinamento, chegou o calor, as praias voltaram a ser das pessoas. Chegou ainda mais calor, as crianças também chegaram à praia. As saídas, com a cadela, passaram a fazer-se ao anoitecer, já sem carros, pessoas ou barulho. Hoje saí pela manhã, percebendo que tudo o que achamos normal é, afinal, uma enorme balbúrdia que faz este doce animal esquivar-se das pessoas e das sombras, caminhando sofregamente em direcção à paz que encontra na praia. Mal sabia que hoje a praia já não estaria ao seu alcance porque também a balbúrdia a devolveu às pessoas. No regresso a casa não consegui deixar de pensar naquilo em que se transformou a nossa vida: um caos ruidoso.

O confinamento a que nos sujeitámos foi uma oportunidade perdida para repensar modos de vida, num contexto em que os limites - todos - estão a ser ultrapassados. Os media sociais mostram uma intolerância que se expressa a vários níveis, a sociedade grita e esbraceja, a política vai dando tiros nos próprios pés, a economia definha e o planeta respira, devagarinho, no tempo que lhe resta até à sua implosão numa estratégia de auto-protecção.

Há anos que estamos em contagem decrescente para que as alterações climáticas se tornem irreversíveis. Julho é o mês sem plástico e nunca, como agora estivemos tão plastificados. A inevitabilidade do colapso é real, afectando as condições de vida e a economia. O que queremos para o futuro? Comida congelada que enfiamos no micro-ondas ou sentir o prazer do sabor de cada ingrediente? O canto dos pássaros ou o rugir dos aviões? A pressa num comboio sobrelotado ou a calma de uma caminhada? A incompatibilidade é real, da mesma forma que abrandar destrói pressupostos económicos nos quais nos baseámos para viver com conforto e bem estar. Contudo, apesar da ciência afirmar que vida, na Terra, continuará, também nos diz que se continuarmos neste registo, vai continuar sem a nossa presença ou connosco em menor número, numa escassez que só os filmes catástrofe imaginaram. Se no confinamento o foco mudou, para o autêntico e o essencial, essa mudança de comportamento também mostrou o quanto a nossa economia se baseia no supérfluo o que, por outras palavras quer dizer que, se diminuirmos o consumo, destruímos a economia mas se regressamos a uma vida mais genuína, conseguimos reverter parte da nuvem negra ambiental que paira sobre nós. O impasse é óbvio e a indecisão também porque se não morremos do mal, morremos da cura…
NewsItem [
pubDate=2020-07-06 16:27:55.0
, url=https://www.sabado.pt/opiniao/convidados/paula-cordeiro/detalhe/a-incompatibilidade-entre-morte-e-a-cura-para-onde-caminha-a-nossa-vida
, host=www.sabado.pt
, wordCount=529
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2020_07_06_446451039_a-incompatibilidade-entre-morte-e-a-cura-para-onde-caminha-a-nossa-vida
, topics=[opinião, paula cordeiro]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]