www.sabado.ptleitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 5 jun. 11:09

Doces mentiras, amargas verdades

Doces mentiras, amargas verdades

Não depende só dos outros, dos políticos ou da elite. Se queremos que a mentira deixe de ser central na vida pública temos de firmar um (penoso) contrato social com a verdade. - Opinião , Sábado.

Durante uns minutos, na semana passada, o site da Sábado exibiu aquilo a que Freud chamaria um "ato falhado": duas notícias – a lei à medida da Festa do Avante e uma entrevista de Francisco Rodrigues dos Santos em que o líder do CDS simpatizava com tudo à direita e demonizava tudo à esquerda – sugeriram-me uma reflexão sobre o papel da verdade e da mentira na política e na sociedade. Comecei a compo-la mas, como acontece frequentemente quando tentamos encravar demasiadas ideias num só sítio, não resultou.

Acabei por desistir da tentativa e fiz um texto mais curto, mais simples, sobre a cultura de desigualdade e privilégio patente na regulação dos "festivais e espetáculos de natureza análoga". Só que na hora de o publicar – eis o ato falhado – enviei à Sábado o ficheiro errado, e foi erroneamente publicado, durante alguns minutos, um esboço inacabado de várias ideias em vez de um texto com cabeça, tronco e membros. Devo aos leitores e à equipa da Sábado (completamente alheia ao meu erro) as minhas desculpas.

Mas há males que vêm por bem: o ato falhado vinculou-me a voltar ao assunto que falhei à primeira tentativa. E há urgência neste assunto porque, independentemente do modo como se traduz nas notícias da semana – esta semana traduziu-se na nomeação de um "paraministro" para a recuperação económica –, a nossa relação com a verdade é hoje uma questão de emergência nacional, acima até da emergência pandémica.

"Eles"

Quando o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho nomeou um homem da banca de investimentos, António Borges, como "consultor" para as privatizações, sem acautelar conflitos de interesses, sem mecanismos de escrutínio parlamentar, sem a responsabilização inerente ao cargo, o então comentador António Costa achou um escândalo. Agora o primeiro-ministro António Costa nomeia um "consultor" para gizar o plano de recuperação económica, com os mesmíssimos vícios que se colocaram com António Borges há quase oito anos, e já não vê problema nenhum.

Também esta semana, o Presidente da República anunciou uma celebração minimalista do 10 de Junho, só com oito pessoas, que confessou ser o modelo que gostaria de ter visto no 25 de Abril e no 1º de Maio, esquecendo que autorizou essas outras celebrações – e com o pormenor delicioso de ter defendido eventos oficiais com menos de dez pessoas à entrada de um concerto que juntou milhares na sala fechada do Campo Pequeno.

Já todos nos habituámos a ver políticos defenderem tudo e o seu contrário. De tal modo que já nem valorizamos a lenta mas constante degradação que essas incoerências repetidas provocam no corpo político e na relação dos cidadãos com a própria democracia. Num sistema parlamentar, o que de mais valioso um político tem é a sua palavra. Desvalorizá-la com o à-vontade com que o fazem os nossos responsáveis eleitos, de todos os partidos, é brincar com o fogo – e vemos os reflexos disso nos níveis crescentes de abstenção eleitoral, nos estudos que espelham o desencanto dos portugueses com a democracia e na atratividade de partidos que defendem não uma regeneração do sistema, mas o seu desmantelamento.

"Nós"

Sim, os políticos mentem. Mas a questão mais interessante é "porque é que mentem", ou mais propriamente, "para quem é que mentem".

Parte importante do problema está na aceleração do tempo político, sobretudo quando colide com o tempo mediático. Se até há pouco tempo os líderes partidários pensavam em ciclos eleitorais de quatro anos – um horizonte já desesperadamente curto para pensarmos em reformas estruturais e problemas de fundo – hoje, cada vez mais, pensam num ciclo mediático de 24 horas. O jogo é não aparecer mal na televisão no noticiário da hora do jantar; ou aproveitar a agenda noticiosa para marcar pontos contra um adversário. A aceleração do discurso mediático tornou a política mais reativa, mais preguiçosa, mais oportunista – e menos coerente.  

O segundo problema decorre do primeiro. Esvaziados de programas – quando é preciso um contrata-se o gestor de uma empresa privada para vir desenhá-lo –, os partidos afirmam-se cada vez menos pela positiva e cada vez mais pela negativa. Na sua entrevista à TSF, na semana passada, Francisco Rodrigues dos Santos disse umas quantas vezes que o CDS apresenta ideias e projetos para o país, mas pouco de concreto disse sobre essas ideias ou projetos, tirando algumas propostas específicas para lidar com os impactos da pandemia – portanto, com o muito curto prazo.

As partes mais salientes da entrevista foram a forma como contemporizou com os impulsos ditatoriais de Viktor Orbán na Hungria ou admitiu alianças com o Chega – duas coisas que deviam ser linhas vermelhas para a direita democrática. Entusiasmou-se mais a falar no "marxismo cultural", não porque isso (seja lá o que for) seja um problema real, mas porque intui que há votos a ganhar à direita se os eleitores tiverem medo da esquerda – tal como à esquerda se atira com demasiada facilidade a palavra "fascista" para amedrontar os eleitores de esquerda para virem votar contra a direita.

Acomodados – até confortáveis – com elevados índices de abstenção estrutural, que tornam as eleições mais previsíveis porque há menos eleitorado flutuante, os partidos preocupam-se apenas em mobilizar os seus eleitores fiéis. E a forma mais fácil de fazê-lo é demonizando o partido do lado, que está ele próprio no mesmo jogo de se "vender" como travão ao grave perigo do campo oposto. Já ninguém fala para o todo nacional, toda a política tornou-se política de nicho.

O resultado é o esvaziamento do centro político e o crescimento dos extremos, em Portugal como na Europa – sem que esses extremos sequer tragam alguma coisa de verdadeiramente novo ou reformador. A tribalização da política bloqueia as instituições e impede os portugueses de falarem pacatamente uns com os outros, ou confrontarem sem histerias opiniões diferentes. A desinformação e as fake news são apenas o corolário deste caminho suicida.

Todos

A solução pareceria fácil: precisamos de outros políticos. E na verdade até precisamos. Mas não vamos tê-los. Porque não? Porque eleitores e eleitos são cúmplices do mesmo jogo. Todos somos ao mesmo tempo vítimas e carrascos do nosso desejo de simplicidade – rapidamente reduzida ao mais básico simplismo. Todos queremos viver na clareza e na verdade, mas a ironia é que a mentira, até porque é criada à medida do seu público, tem sempre uma aparência mais límpida e cristalina. A mentira é mais atraente, mais reconfortante do que a verdade, que tem sempre vários prismas, várias zonas cinzentas, acarreta várias dúvidas.

Erradicar a mentira da política não exige apenas melhores políticos, exige melhores cidadãos. Exige uma grande dose de coragem cívica para confrontar as verdades, por duras que sejam. Podemos e devemos defender os nossos pontos de vista com paixão, com firmeza, até com frontalidade (que é um pecado mortal na cultura portuguesa). Mas devemos guardar sempre alguma margem de dúvida quanto aos nossos argumentos, em vez de tapá-la com a desonestidade intelectual de centrar a atenção não no mérito do argumento adversário, mas nas (reais ou inventadas) motivações de quem argumenta. Especular sobre o carácter dos outros é próprio de quem tem pouco carácter de seu.

Quem nos oferece certezas absolutas e respostas simples para problemas difíceis está a mentir-nos. E quem pede respostas simples para problemas difíceis está a pedir que lhe mintam. Em política, a mentira também é contratual: se os cidadãos odeiam a complexidade e a evitam, também o farão os seus representantes. E ficamos sem armas para resolver os nossos problemas.

A democracia não se salva entregando o poder aos políticos puros – que não existem e acabarão sempre por nos desiludir. A democracia exige a participação constante, quotidiana, dos cidadãos. É um sistema em que cada cidadão tem voz e cada voz é ouvida. Mas isso só se consegue se a maioria das vozes não viver no silêncio. Temos de aceitar que a verdade é muito mais dinâmica, complexa, dúbia, até contraditória, do que a mentira. Porque é assim a vida. E, com essa noção, temos de duvidar das certezas dos caixeiros-viajantes do voto, que contam patranhas simples para votos baratos.

Ninguém vem para nos salvar. Temos de ser nós, juntos, a encontrar o caminho no nevoeiro, tateando, mapeando, discutindo uns com os outros, errando, corrigindo. A verdade é ruidosa. Só a mentira aparece sempre lustrosa e embrulhadinha. Tudo isto exige esforço, paciência, inteligência e empatia. Porque é que há tanta gente a viver na mentira? Porque dá muito menos trabalho.

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