expresso.ptGonçalo M. Tavares - 5 jun. 21:23

Diário da Peste. Os tempos não estão mansos

Diário da Peste. Os tempos não estão mansos

Opinião de Gonçalo M. Tavares

Diário da Peste,
4 de Junho

Derrame de combustível no Árctico.
Putin decreta estado de emergência: “O rio precisará de décadas para recuperar.”
Os humanos também demoram décadas para recuperar.
Por vezes séculos.
Norte, sul: dessincronizados.
Finlândia, primeiro dia sem novos casos de infeção.
México, pela primeira vez: mais de mil mortos num dia.
Memória do rio e memória dos filhos dos filhos dos nossos filhos.
A montanha não esquece, o rio não esquece, o elefante não esquece.
O homem esquece - mas os seus filhos não.
Activistas belgas pedem remoção de estátuas de Leopoldo II.
Leopoldo II e o domínio do Congo.
Fala-se de genocídio de 10 milhões de pessoas. O “Coração das Trevas” de Joseph Conrad.
Experiência de Conrad, capitão de um navio a vapor. Congo.
Cabeças no sítio errado, antes.
Estátuas no sítio errado, agora.
Os filhos dos filhos dos filhos dos filhos não esquecem.
Paulo Leminski:
“bem no fundo
no fundo, no fundo,
bem lá no fundo
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data”
Depois de uma experiência forte em terra, põe-te ao mar.
Depois de uma experiência forte no mar, fica em terra.
Roma e Jeri são claramente duas soluções.
Um animal é uma solução.
De repente, no computador. Dylan / Keith Richards / Ron Wood - Blowin' In The Wind.
Live Aid 1985.
Ron Wood parte uma corda qualquer da guitarra.
Keith Richards parte uma corda qualquer na cabeça.
Ron Wood troca de guitarra.
Ron e Keith Richards concluem no acorde certo.
“mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande”, escreve Leminski.
Animais suspeitos de infectarem duas pessoas.
Holanda quer “abater 10 mil martas”.
“Juiz salva-as até segunda-feira.”
O juiz salva os animais, frase bíblica.
Animais suspeitos, frase do século XXI.
Duas frases em tempos opostos.
Praia da adraga. Nuvens que lá em cima não páram.
Nuvens desatentas aos limites cá de baixo.
Nuvens com forma de ovelhas e lobos.
Uma nuvem com calças, dizia de si mesmo Maiakovski.
Quero escrever um livro sobre nuvens (como toda a gente decente).
Conrad e o horror do Congo Belga de Leopoldo II.
O terror é colocar as cabeças no sítio errado.
O medo coloca a cabeça de um vivo no sítio errado.
Coloca a cabeça na fuga e não no desejo.
Uma enfermeira espanhola diz:
“o último beijo que recebi foi a 7 de março às seis da tarde.”
Estamos a 4 de Junho e a noite avança.
Inquérito do Estado: data e hora do último beijo.
O artista Francis Allys a tentar caçar ciclones.
Como se os ciclones fossem animais.
Existe uma Associação internacional de observadores de nuvens.
Penso em nuvens internacionais.
Ao contrário dos barcos: não mantêm a nacionalidade onde quer que estejam.
Ovelhas e lobos do mesmo lado, mas não do lado bom. Até as ovelhas.
Os tempos não estão mansos.
Não apenas os humanos. Em 2020, todo o animal é suspeito.

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Índice

Um homem afogou-se em Deus
As leis não são destino, mas vocabulário. Podem alterar-se
Quem respira está a resistir
Guilhotina, Corda e Fogo

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