expresso.ptLourenço Pereira Coutinho - 4 jun. 10:06

Donald Trump, um incendiário numa fábrica de pólvora

Donald Trump, um incendiário numa fábrica de pólvora

Opinião de Lourenço Pereira Coutinho

A agonia de George Floyd, o afro americano morto na semana passada em Minneapolis, é símbolo da impotência dos valores humanistas face ao lado mais perverso e cruel do ser humano. A gratuitidade da violência exercida por quatro polícias contra um homem algemado e subjugado é cobarde e revoltante. Mas o que mais choca nas imagens que correram mundo é a forma como esta foi praticada. Os polícias envolvidos na morte de Floyd não fizeram um gesto brusco, não levantaram a voz. Imperturbáveis, deitaram Floyd no chão, dois a agarrar-lhe o corpo algemado, e outro, Derek Chauvin, ajoelhado sobre o seu pescoço, de mãos nas ancas e ar triunfante. Sem misericórdia, sem emoções, como se estivessem a saborear a lenta agonia do seu troféu de caça. Esta violência fria lembra o sadismo dos guardas dos campos de concentração nazi, que ouviam música clássica enquanto os prisioneiros caminhavam para as câmaras de gás.

A cena abjeta de Minneapolis correu mundo porque foi filmada por um telemóvel. Mas não terá sido diferente de muitas outras injustiças e crueldades praticadas noutros lugares do mundo, onde as desigualdades e o ódio pela diferença resultam em violência primária despida de humanidade. Acontece que a morte de Floyd ocorreu nos Estados Unidos da América, uma democracia que, quando nasceu, não foi para todos, e envolveu um afro americano e três policias brancos (j�� o polícia que mantinha os transeuntes afastados, e que também permaneceu imperturbável, parece ter origem asiática).

A julgar pelas imagens, os quatro policias envolvidos na morte de George Floyd agiram com clara intencionalidade. Mas o seu comportamento abjeto não significa que todos os policias sejam perseguidores de afro americanos, nem que estes sejam todos bons cidadãos. Os valores humanistas e de cidadania não têm cor ou credo pre definido. Também, nem todos os protestos que se geraram após o sucedido devem ser aplaudidos. Os protestos violentos são condenáveis, e os protestos pacíficos são justos e legítimos. Infelizmente, a capacidade para separar o “trigo do joio” diminui à medida que aumenta a tensão social, e que as posições se vão extremando. É o que acontece frequentemente na sociedade americana, dividida entre defensores de um caminho isolacionista, maniqueísta, segregacionista e dogmático, e defensores de uma via cosmopolita, democrática e inclusiva.

No meio de uma crise pandémica e de uma guerra económica e diplomática com o c��nico regime chinês, que tem um vasto currículo de desrespeito pelos direitos humanos, a ocasião não podia ser pior para o despertar do fantasma das tensões raciais, que tem assombrado os Estados Unidos desde a sua fundação. Se a abolição da escravatura acabou com a maior das desigualdades, não eliminou as leis raciais discriminatórias, que vigoraram até há poucas décadas, nem o atual segregacionismo informal de parte da sociedade americana.

Para agravar, os Estados Unidos têm neste momento um presidente incapaz, narcisista, mitómano e maniqueísta. O discurso de Donald Trump tem fomentado o extremismo, tanto dos seus apoiantes, quanto de parte dos seus detratores. A sua lógica maniqueísta acusa da mesma forma todos os que se manifestam contra o crime de Minneapolis, não importa se participam em protestos violentos, ou pacíficos. Para ele e para os seus apoiantes, é mais prático agregar o “inimigo” numa única categoria, de forma a combatê-lo mais eficazmente.

Trump não está preocupado em resolver tensões e conflitos de forma equilibrada e sensata. Todas as suas ações têm um único objetivo: fixar o seu eleitorado, e dizer o que este quer ouvir, tudo com o objetivo de assegurar a reeleição. Apesar da sua fanfarronice, Trump é, porém, um homem manietado. É prisioneiro dos votos dos oportunistas, dos segregacionistas, dos nostálgicos do far west, e dos evangélicos. A sua exibição da bíblia em frente da igreja episcopal de S. João, e a visita ao santuário João Paulo II, são tão descaradamente oportunistas que mereceram criticas imediatas de autoridades religiosas, como a bispa episcopal de Washington, e o arcebispo católico de Washington.

Os Estados Unidos vivem hoje um clima de pré guerra civil, com os protestos a alastrarem pelos estados da federação, e com o presidente a menorizar os governadores estaduais, e a considerar o envio do exército federal para repor a ordem e a segurança. Trump não é culpado por séculos de tensões raciais, nem pela crueldade de quatro polícias de Minneapolis. Mas não deixa de ser o incendiário que entrou por acaso numa fábrica de pólvora.

NewsItem [
pubDate=2020-06-04 11:06:01.0
, url=https://expresso.pt/opiniao/2020-06-04-Donald-Trump-um-incendiario-numa-fabrica-de-polvora
, host=expresso.pt
, wordCount=724
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2020_06_04_1397647789_donald-trump-um-incendiario-numa-fabrica-de-polvora
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]