eco.sapo.ptRicardo Santos - 30 mar. 08:37

E se a dívida comprada pelo BCE “nunca” for paga?

E se a dívida comprada pelo BCE “nunca” for paga?

Se um banco central não serve para garantir a existência da sua União Monetária, para que serve afinal?

Com o anúncio do programa de compra de dívida pública do Banco Central Europeu (BCE), deixa de ser necessário um programa do Mecanismo Europeu de Estabilidade. No entanto, a ajuda do BCE não chega e as perspectivas para emissão de dívida conjunta parecem completamente postas de parte. Com os défices a dispararem e sem mutualização das dívidas, os Estados mais endividados verão a sua dívida subir para níveis insustentáveis e terão sérias dificuldades no futuro. Depois da desilusão da semana passada no Conselho Europeu, parece que tal como na crise das dívidas soberanas, voltaram as divisões norte/sul quanto à emissão de dívida conjunta – e neste caso, tendo em conta o que está em jogo, estas divisões podem mesmo pôr em causa a União.

Qual a solução para este impasse? O BCE adiar por várias décadas o pagamento da dívida pública que vai comprar. Não é um perdão de dívida (ela será paga) mas resolve os problemas de sustentabilidade dos Estados mais frágeis.

No meu último artigo apontava para uma solução que passaria por uma linha cautelar para todos os Estados, como instrumento para permitir o acesso ao programa ilimitado de compras de dívida do BCE criado em 2012 por Mario Draghi (o OMT). No entanto, depois do anúncio do novo programa de compras de activos do BCE de pelo menos 750 mil milhões de euros até ao final do ano, sem limite por pais, todos os estados membros passam a beneficiar de algo ainda melhor que um OMT, já que não necessitam de qualquer programa.

Também o instrumento que estará a ser estudado pelo Eurogrupo e pelo MEE – a criação de uma linha cautelar equivalente a 2% do PIB por país, com condicionalidade relacionada a curto prazo com a crise, se torna irrelevante. Não só os Estados já têm acesso a compras ilimitadas do BCE, como também o valor desta linha (2% do PIB por país) é quase simbólico.

Não só é metade da capacidade financeira do MEE (para quê poupar nesta fase?!) como também fica aquém das necessidades orçamentais de todos os países, que andarão na casa dos 5% do PIB.

O Eurogrupo bem diz que 2% do PIB é o valor médio das medidas anunciadas até agora por todos os países, mas na verdade os défices irão aumentar muito mais, não só devido ao impacto da recessão, mas também devido às medidas de apoio aos rendimentos e salários que foram também anunciadas, cujo montante final se desconhece (no caso português, segundo o primeiro ministro, podem totalizar mil milhões de euros por mês, cerca de 0,5% do PIB). Com o apoio do BCE e com um valor tão baixo disponível através do MEE, qual o incentivo para algum país pedir esta linha, sujeitando-se ainda por cima a condições?

No entanto, ainda que o BCE tenha resolvido o problema de curto prazo, o impacto financeiro e orçamental da crise e das medidas já anunciadas, e das que o serão no futuro, levará a grandes aumentos da dívida pública. Aumentos esses que poderão voltar a a colocar alguns países perto de uma situação insustentável.

Tomando Itália e Portugal como exemplo, dois dos países com o rácio de dívida mais elevada da área do Euro. A dívida pública atingiu, em 2019, em Portugal 118% do PIB, e em Itália os 134% do PIB. Este ano, partindo dos cenários económicos que foram sendo divulgados nos últimos dias por instituições privadas e publicas poderão ver os seus rácio da dívida subir pelo menos para 130% e 150% do PIB respetivamente [1].

Esta subida da dívida acontecerá quer esta seja financiada pelos estados individualmente ou através de Euro/Coronabonds. Ou seja, mesmo que o BCE ajude a conter os custos de financiamento e que a Europa possa emitir dívida conjunta, esta crise criará sérios problemas à sustentabilidade da divida publica dos países mais endividados.

A solução mais rápida passaria por ter o BCE a financiar directamente os estados membros, algo defendido num manifesto por um alargado numero de economistas. No entanto, esta solução vai não só contra os tratados da União Europeia como vai contra as mais profundas convicções de alguns estados, principalmente da Alemanha. Muito provavelmente mais depressa a Alemanha abandonaria o Euro do que aceitaria financiamento directo do banco central.

Mas há outra solução que passa também pelo BCE: alongar o mais possível a maturidade da dívida comprada em mercado secundário no novo programa.

Genericamente, a sustentabilidade da dívida publica depende da capacidade dos Estados (economias) gerarem recursos para honrarem seus compromissos – ou seja crescimento. No entanto, depende também de quando é que esses compromissos tem de ser pagos, já que como qualquer credor, a capacidade do Estado em pagar as suas dívidas melhora se a maturidade das mesmas for alargada.

Assim, uma solução passa pelo BCE anunciar que nas próximas décadas irá reinvestir a dívida que compra ao abrigo do PEPP e que vai vencendo. Ou seja, na prática, os Estados membros não teriam de se preocupar com o refinanciamento dessa dívida. A dívida continua a ser dívida dos países, e conta para as estatísticas, mas na realidade não constitui um grande problema para a sustentabilidade já que existe a garantia do seu refinanciamento (teriam sempre de ser pagos os juros, mas isso é mais fácil de gerir).

Adicionalmente, para reduzir os riscos para o balanço do BCE e sossegar os espíritos mais inquietos do norte da Europa, só poderão beneficiar deste reinvestimento, os Estados membros que cumprirem as regras do pacto orçamental. Caso alguns países tenham problemas em emitir no mercado primário, a Europa ou o MEE pode também emitir as Coronabonds, no mais longo prazo possível. Estas obrigações seriam também compradas pelo BCE que também reinvestiria durante um muito longo prazo.

E ainda que isto pareça muito radical, convém ter em conta que o BCE já o faz em relação à dívida comprada ao abrigo do anterior programa de compra de obrigações. Em 2017, Mário Draghi anunciou que o BCE iria reinvestir as obrigações que fossem vencendo “enquanto a inflação não recuperasse para os níveis desejados”. Agora, o BCE poderia também anunciar dizer que reinvestiria as obrigações compradas neste programa durante um longo período – pelo menos 50 anos ou mais, alegando que o faria enquanto o impacto da crise não fosse completamente mitigado pelos estados.

A dívida pública, paga-se. No entanto, não tem que se pagar já e tempos extraordinários exigem soluções também elas extraordinárias. Exigir algo deste género ao BCE pode parecer radical para alguns países, mas é provavelmente mais fácil vender esta ideia do que a emissão de dívida comum para todas as despesas relacionadas com esta crise, já que nunca se tratará de um perdão.

Christine Lagarde, presidente do BCE, pode não querer propor para já algo do género para que os chefes de Estado façam a sua parte, mas deverá fazê-lo mais tarde.

[1] Este cenário pode ser até relativamente optimista já que assume apenas as medidas orçamentais já anunciadas, os habituais multiplicadores orçamentais (de 0.5), e uma contração do PIB das respetivas economias de cerca de 5%. Neste caso, é razoável assumir que serão anunciadas mais medidas e que o impacto orçamental da recessão até possa ser maior.

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