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As histórias de um Tribunal Criminal

As histórias de um Tribunal Criminal

Vítima de violência doméstica. O marido está em prisão preventiva há perto de 1 ano, desde o dia em que, depois de a trancar numa divisão da casa, lhe desferiu vários pontapés por todo o corpo e lhe apontou uma arma que de seguida disparou para o lado. - Opinião , Sábado.

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Vítima de violência doméstica. O marido está em prisão preventiva há perto de 1 ano, desde o dia em que, depois de a trancar numa divisão da casa, lhe desferiu vários pontapés por todo o corpo e lhe apontou uma arma que de seguida disparou para o lado.

Em julgamento, quando lhe é perguntado se quer prestar depoimento, hesita acabando por dizer que sim, que quer contar tudo o que se passou e que jura dizer a verdade. E conta.

Diz que o marido sempre foi muito ciumento e que ficava "passado da cabeça" quando a via a falar com outro homem. Nessas ocasiões bebia muito e quando já não sabia o que fazia batia-lhe. Com murros, estaladas, pontapés, por todo o corpo, onde calhava. Muitas vezes as agressões eram em frente aos dois filhos, ambos de tenra idade. Mas, embora lhe dissesse muitas vezes que a matava, só uma vez lhe apontou a arma. E, quando não tinha ciúmes e não bebia era um bom marido e um excelente pai. Tratava-a com muito carinho, adorava os filhos e brincava com eles. Na única vez que lhe apontou a arma estava desvairado mas a culpa até era dela porque tinha estado a falar muito tempo com um vizinho. Nunca apresentou queixa, nem sequer dessa vez. Foi uma vizinha que chamou a polícia e o processo "andou para a frente" contra a vontade dela. Já o perdoou e espera que o Tribunal faça o mesmo. Ela e os filhos precisam muito do marido e do pai em casa.

O arguido foi condenado em pena de prisão efectiva e proibido de todos e quaisquer contactos com a vítima. Ela ouviu a decisão entre lágrimas. Pouco tempo depois, o Director do Estabelecimento Prisional questionou o Tribunal sobre se a podia deixar visitar o marido já que ela insistia em fazê-lo.

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O arguido é jovem, tem apenas 17 anos. Tentou matar o irmão mais novo, de 10, diz a acusação. Nunca falou ou respondeu a qualquer pergunta sobre tal questão. Nada diz.

A mãe e o irmão, imediatamente a seguir aos factos, contaram o que aconteceu. Relataram as fúrias repentinas do filho e irmão mais velho que os faz temer pela vida e os obriga a dormir de portas trancadas. Foi numa dessas fúrias que atacou o irmão. Precisa de tratamento à cabeça mas os médicos apenas lhe dão comprimidos que ele não toma. O arguido foi preso preventivamente.

Chegados a julgamento a mãe e o irmão, ao abrigo de faculdade legal, recusaram-se a prestar depoimento. Tudo o que disseram antes, no decurso do inquérito, não pode ser valorado face a tal recusa. É absolvido e volta para casa.

A mãe diz que não há mais ninguém que o acolha e que não pode escolher entre dois filhos, tem que apoiar ambos.   

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O arguido é acusado de violar e de abusar sexualmente da filha. Os abusos começaram quando ela tinha 9 anos. Só aos 14 teve coragem para contar à mãe. Esta fica indignada, mas com a filha. Não acredita nela e recusa-se a tomar qualquer atitude. A filha desabafa com uma amiga que conta aos pais e são estes que comunicam os factos à autoridade policial.

O pai nega, a mãe não acredita na filha e, embora o marido fique preso, recusa-se aceitar a filha em casa. A jovem é institucionalizada, perde o contacto com todos os familiares, incluindo os avós e os irmãos com quem mantinha fortes laços afectivos.

O pai é condenado a um longo período de prisão mas a mãe continua sem aceitar ver a filha, não mantém com ela quaisquer contactos e culpa-a pela situação económica precária em que a família se encontra: falta o ordenado do pai.

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Um rapaz de 17 anos é detido, indiciado pela prática de inúmeros crimes de roubo e de um crime de violação. É preso preventivamente.

Quando em julgamento lhe é perguntado onde vivia antes de preso responde "por aí". E, esclarece, viveu com a mãe, com a avó materna e depois com o pai. Quando tinha 14 anos bateu no filho da madrasta e o pai mandou-o embora de casa. Não avisou a mãe ou a avó as quais também não deram por falta dele. Nem o Estado. Passou a viver na rua.

No julgamento contou, com muito orgulho, que desde que estava preso aprendeu a ler e a escrever. Nenhum familiar assistiu ao julgamento, esteve presente na leitura da decisão ou o visitou na prisão.

As mencionadas "histórias" são a vida real, não de apenas quatro famílias – mas de centenas de pessoas que diariamente se deslocam aos Tribunais, como arguidos, vítimas ou testemunhas. São verdadeiras e as mesmas circunstâncias e situações repetem-se com uma frequência assustadora nas salas de audiência de todo o país.

Aos Tribunais Criminais cabe decidir esses processos.

Para os juízes que tomam essas decisões, por mais justas e equilibradas que sejam, fica sempre o amargo de boca de quem tem consciência de que os dramas humanos que lhes estão subjacentes não ficam resolvidos. Mesmo sabendo que tal está para além dos poderes e das funções dos Tribunais e que é ao Estado e à sociedade civil, através das suas instituições de apoio social, que cabe a intervenção e resolução de tais questões.

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