expresso.ptLourenço Pereira Coutinho - 14 nov. 10:06

A nova inquisição

A nova inquisição

Opinião de Lourenço Pereira Coutinho

A notícia do castigo aplicado pela Federação Inglesa de Futebol (FIF) a Bernardo Silva, por alegados comentários racistas sobre Benjamin Mendy, seu colega de equipa no Manchester City, só pode causar perplexidade aos sensatos. O episódio, que nunca devia ter sido notícia, conta-se em poucas palavras. O português Bernardo Silva, um dos melhores jogadores do Manchester City e um profissional de conduta exemplar, é amigo de Benjamin Mendy, seu colega de equipa, um francês de origem senegalesa. A amizade entre os dois futebolistas é sólida e começou quando ambos alinhavam no Mónaco.

Há umas semanas, Bernardo Silva fez referência ao amigo Benjamin Mendy na sua conta de tweeter, apelidando-o de “conguito”, numa óbvia alusão à origem senegalesa deste. Qualquer pessoa de bom senso que leia a mensagem, percebe facilmente que esta foi escrita num registo de cumplicidade, e só mentes deturpadas e fundamentalistas podem considerar que Bernardo Silva foi, ou quis ser, ofensivo. Acontece que essas mentes deturpadas, sempre vigilantes e implacáveis, resolveram fazer do tweet de Bernardo Silva um caso de racismo.

A situação atingiu tais proporções, que o futebolista português foi mesmo obrigado a apagar o tweet, a que se seguiu uma explicação sobre o mesmo, e a garantia de não ter procurado ofender Benjamin Mendy. Aliás, o futebolista de origem senegalesa ficou tão ou mais perplexo com a situação, e juntou-se às vozes sensatas que saíram em defesa do seu amigo Bernardo Silva. Esta “não notícia” ficaria por aqui, não fosse a FIF ter cedido a pressões e ao politicamente correto, e ter feito uma interpretação literal e legalista dos seus regulamentos.

Resultado, Bernardo Silva foi agora castigado com um jogo de suspensão, multado em 50 mil libras (€58 mil), e obrigado a frequentar uma formação sobre racismo. A justificação do castigo não foi tanto a “piada entre dois amigos próximos”, mas sim a “exposição” da mesma a “600 mil seguidores”. O facto da FIF considerar que alguns dos milhares de seguidores poderiam ficar ofendidos com o tweet é, em si, uma cedência patética, e só contribui para reforçar o poder da minoria fundamentalista que dita uma agenda asséptica e não tolera diferenças, sejam elas positivas ou negativas. As instituições deviam promover o equilíbrio, e não aceitar tanto ofensas ou humilhações, como suscetibilidades injustificadas, sobre pena de potenciarem e darem cobertura a reais situações de racismo e intolerância. Os fundamentalismos e extremismos só avançam se as democracias representativas não tiverem formas de os anularem, e cederem sempre ao que não é razoável.

Espero que, ao menos, o dinheiro da multa seja destinado a ajudar verdadeiras vítimas de racismo, e estimo que a sensatez volte depressa a um país e a um povo até agora conhecidos pelo seu sentido de humor, ironia, e aversão a legalismos redutores.

Uma interpretação, por certo demasiado livre, do episódio, levou-me a viajar por algumas épocas históricas, e a pensar em analogias que suscitam reflexões sociológicas. Muitas sociedades encaram a heterogeneidade de pensamento como uma ameaça à sua segurança, e tendem a suportar discursos “politicamente correctos”, que podem revestir-se de diferentes índoles. No século XII, a Igreja estabeleceu a Inquisição para controlar as heresias cátara e valdense, que se espalhavam por França. Na altura, os reis francos controlavam apenas uma pequena parcela do território francês, pouco mais que a região de Paris, e o poder estava repartido pelos grandes senhores feudais. Neste enquadramento,

a Igreja permanecia como um dos poucos elementos de unidade, e a sua fragmentação poria por certo fim à débil unidade do reino. A inquisição medieval conseguiu impôr-se, pois, não só por necessidade religiosa mas, também, por imperativo político.

O mesmo veio a estar na base da chamada “inquisição moderna”, que surgiu em Aragão e Castela nos finais do séc. XV, no tempo dos reis católicos e do tristemente célebre Tomás de Torquemada, inquisidor geral destes reinos. Durante o tempo da reforma protestante e da contra reforma católica (sécs. XVI e XVII), a unidade religiosa foi encarada como um elemento central de defesa do estado. Este princípio esteve na base da intolerância e conflitos do tempo barroco, e das perseguições à liberdade de consciência e pensamento, de que tanto católicos, como protestantes, foram tanto réus quanto vítimas.

Mais tarde, no tempo do terror revolucionário francês, a convenção instituiu o “comité de salvação pública”, encarregue de denunciar “maus revolucionários”, ou seja, todos os que não pensavam como o “incorruptível” Robespierre e os seus indefectíveis. Infelizmente, os métodos de Robespierre tiveram adeptos e continuadores em todos os regimes autoritários e totalitários contemporâneos, tanto de esquerda como de direita, religiosos ou laicos, ocidentais ou orientais.

Quer isto dizer que estou a comparar a atitude da FIF com a de regimes intolerantes e líderes sanguinários? Claro que não. Aliás, a existir um inquisidor no episódio de Bernardo Silva, este não é, obviamente, a FIF, que foi apenas fraca, mas sim os fundamentalistas vigilantes que denunciaram o tweet “racista”. Por eles, voltávamos aos tempos dos torquemadas, robespierres, e companhia. Além do mais, os tempos históricos são muito diferentes, assim como as situações e as intenções dos citados. Com estas analogias, estou apenas a isolar um facto, a liberdade de expressão, e a constatar que muitas sociedades e líderes, mesmo em democracia, têm a tentação de procurar homogeneizar o pensamento e os comportamentos, indo muito para além da sua legítima intervenção no espaço público, e condicionando a esfera privada. Desgraçadamente, esta é uma tendência que se tem acentuado nos últimos anos.

As regras em sociedade devem pautar-se pela tolerância, pelo bom senso, e pelo equilíbrio. Tal significa que nem tudo precisa de estar legislado ou formalizado, e que tão penalizadora é a atitude daqueles que, no espaço público, desrespeitam convenções ou costumes enraizados, como dos que, sob a esfera privada, procuram impôr pensamentos uniformizados. A liberdade de expressão não significa, porém, ter o direto de fazer ou dizer tudo, pelo que não pode ser confundida com libertinagem. Deve subordinar-se a uma ética que impeça, denuncie e penalize comportamentos atentatórios da liberdade dos outros, de que é exemplo a propagação anónima de rumores falsos. Mas é esta mesma ética que deve impedir também cedências patéticas e confrangedoras, como a da FIF no caso Bernardo Silva.

Uma sociedade saudável respeita as instituições e as regras de convivência pública. Trata com seriedade o que é para ser levado a sério, mas tem de ser capaz de se rir de si própria, de aplaudir o humor e a ironia. Os portugueses devem poder continuar a divertir-e com o Zé Povinho, e os ingleses com o John Bull. Infelizmente, ou felizmente, o bom senso não pode ser legislado ou decretado, mas a sua falta é sintoma de uma sociedade doente.

Pela minha parte, abro aqui uma excepção, e revelo em público algo que, não fosse o motivo deste artigo, continuaria por certo em privado: por vezes, trato o meu filho Frederico por “Frederik Lorensson”, porque o acho parecido com os “suecos” e, ele tem, por parte materna, ascendência daquelas paragens. Espero que esta terrível revelação não ofenda ninguém, muito menos os escandinavos, nem que seja base para algum processo. Ou será que, neste caso, já não se trata de racismo?

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