expresso.ptDavid Justino - 14 nov. 11:43

De boas intenções...

De boas intenções...

A redução sustentada das taxas de insucesso e retenção só se consegue com melhor ensino e melhor aprendizagem. É esse desafio que deverá mobilizar as políticas públicas de educação, sem recurso às soluções “mágicas” que mais não são que um paliativo e uma ilusão sem efeitos duráveis.

Em educação, como em muitos mais domínios da vida social, os bons resultados nem sempre decorrem de bons processos. É assim nas empresas quando se recorre à contabilidade criativa, é assim nos seus departamentos comerciais quando se pretendem atingir objetivos a qualquer custo, é assim na política quando a obsessão das metas estatísticas faz despertar as leituras mais arrevesadas que a imaginação humana alguma vez concebeu. Também em educação a focagem nos resultados tem efeitos perversos sobre a adequação dos processos.

Vem o curto antelóquio a propósito do debate sobre a retenção escolar que ontem teve lugar na Assembleia da República e onde o meu nome foi invocado a propósito de uma recomendação do Conselho Nacional de Educação sobre aquela matéria. Cumpre-me esclarecer que todos os argumentos aduzidos nesse texto e no estudo anexo se mantêm atuais e que continuo a subscrevê-los com o mesmo entusiasmo e convicção com que o fiz na altura.

A elevada retenção escolar que se registava em Portugal constituía um problema estrutural do sistema de ensino e representava então, tal como representa hoje numa escala mais reduzida, uma iniquidade que contraria os propósitos mais decisivos de qualquer sistema de ensino numa sociedade democrática.

Desde 2013 que se identificava uma redução ligeira nas taxas de retenção e desistência, depois de um aumento resultante da introdução das provas finais do 4º e do 6º anos de escolaridade. Em 2016 estavam reunidas as condições para se dar continuidade a esse combate. Entretanto, tive oportunidade de alertar que o desafio não se ganharia de imediato e muito menos por decreto. Falei em 10 a 15 anos para o concretizar de forma coerente para conseguir reduzir o fenómeno à dimensão residual que se pretendia.

Perante aqueles argumentos não foi difícil mobilizar uma parte significativa da comunidade escolar para o desafio de fazer reduzir a expressão quantificada desse fenómeno. Mas foi possível também sensibilizar os diretórios partidários para a necessidade de se adotarem medidas que permitissem reduzir sustentadamente os efeitos desse problema. Os programas dos partidos concorrentes às eleições legislativas de 2015 consagraram, cada um a seu modo, a prioridade ao sucesso educativo e à redução da retenção escolar.

Convergentes nos propósitos, restava saber quais os recursos e quais as medidas que seriam mobilizadas para o efeito. O Programa do XXI Governo Constitucional consagrou – e bem! - no conjunto das políticas educativas uma especial prioridade à promoção do sucesso escolar e o compromisso de redução da retenção escolar. Para o efeito foram mobilizados fundos estruturais para financiamento de ações propostas pelas escolas.

Entretanto a boa vontade revelada nos primeiros sinais da governação rapidamente se desvaneceu:

  • Pela eliminação das provas finais do 4º e do 6º anos de escolaridade
  • Pela inexistência de um plano coerente e de dimensão estratégica que recenseasse as medidas e os recursos, a médio e longo prazo.
  • Pela responsabilização das escolas e dos professores por objetivos expressos através dos resultados escolares, à revelia da indispensável adequação e consolidação dos processos. Responsabilização essa que se traduzia correntemente numa pressão intolerável sobre as direções para fazer aligeirar os critérios de avaliação e classificação.
  • Pela precipitação de uma reforma curricular feita de supetão, sem a devida preparação e planeamento.
  • Pela pouca atenção concedida à sinalização precoce das dificuldades de aprendizagem – antes ou logo nos primeiros anos da escolaridade obrigatória – e à valorização da educação de infância.

Após quatro anos de políticas educativas com o cunho indelével da “geringonça”, vem o Governo remodelado avançar com a criação de “um plano de não retenção no ensino básico, trabalhando de forma intensiva e diferenciada com os alunos que revelam mais dificuldades”.

Então, o que andaram a fazer nos últimos quatro anos? Os planos estratégicos elaborados pelas escolas foram avaliados nos seus impactos? Será que se trata do reconhecimento que o que foi feito não resultou? Ou será que esse plano “traz água no bico”? Ou seja, prenuncia um conjunto de medidas facilitadoras das transições de ano e de ciclo, baixando o nível de exigência e trabalhando para a estatística do falso sucesso.

Sempre entendi que melhores resultados, nomeadamente com a redução sustentada das taxas de insucesso e retenção, só se conseguem com melhor ensino e melhor aprendizagem. É esse desafio que deverá mobilizar as políticas públicas de educação, sem recurso às soluções “mágicas” que mais não são que um paliativo e uma ilusão sem efeitos duráveis. Todo o esforço terá de ser orientado para a sinalização precoce das dificuldades de aprendizagem e para a adoção das medidas ajustadas à diversidade das limitações que condicionam o direito ao sucesso educativo para todos.

David Justino, vice-presidente do PSD e ex-presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE)

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