Daniel Traça - 18 set. 10:15
A última linha de defesa da democracia são as pessoas
A última linha de defesa da democracia são as pessoas
Nas grandes ocasiões, são as pessoas, as com poder e as sem poder, individualmente ou em grupo, que definem o sucesso das civilizações. Esta constatação surge dos acontecimentos políticos recentes nos Estados Unidos da América e no Reino Unido.
Nos EUA, o reinado Trump permanece indisputado, com um partido republicano em silêncio perante os mais violentos ataques à decência democrática e civilizacional, incluindo insultos dirigidos a quatro congressistas democratas de famílias emigrantes (três das quais nascidas nos Estados Unidos da América) para "voltarem para casa". Na rua, como no congresso, eleitores e eleitos do partido republicano apregoam publicamente valores de inclusão, tolerância e sustentabilidade, mas não parecem preocupar-se que o Presidente ponha em prática políticas e faça discursos contrários a eles.
O contraste com o Reino Unido, onde os partidos da oposição se uniram a membros do partido conservador para impedirem um atentado à democracia por Boris Johnson, não podia ser mais claro. Os deputados conservadores puseram mesmo em risco o seu futuro político perante a ameaça, concretizada, de expulsão do partido. O resultado foi uma derrota absoluta da tentativa de inversão da democracia, que não inviabiliza os debates que se possam ter sobre um tema que é complexo e difícil.
Como explicar esta diferença? Obviamente, a coragem dos parlamentares britânicos foi um ato de enorme generosidade, daqueles de que a história talvez falará. Mas será apenas uma questão de falta de coragem dos EUA - um país construído à base da coragem política de indivíduos desde o princípio da sua história. Ou terá mais que ver com o interesse pessoal e a economia política?
A política de Trump congrega três grupos da sociedade dos EUA: as faixas mais conservadoras e reacionárias, as classes trabalhadoras desfavorecidas pela globalização e parte da elite empresarial e financeira. Estímulos económicos, baixas de impostos e ganhos na bolsa acompanham uma guerra comercial contra a China e uma retórica xenófoba e divisiva para garantir o seu apoio. Esta grande coligação forjada por Trump assegura a força política entre os congressistas republicanos, que querem ser reeleitos. Ela sobreviverá e, porventura, manter-se-á no poder enquanto a economia estiver forte e enquanto os elementos que não estão de acordo com o discurso xenófobo e reacionário de Trump considerarem que é um preço que vale a pena pagar por impostos mais baixos e um índice bolsista mais elevado. Talvez com um pouco mais de conhecimento da história fosse mais fácil compreender o preço efetivo desse silêncio ensurdecedor.
Para Boris Johnson, a coligação é mais ténue. As elites empresariais e financeiras estão conscientes de que uma saída do União Europeia será um verdadeiro hara-kiri económico para o Reino Unido e não apoiarão Johnson no seu despautério, ficando assim a coligação mais frágil e mais instável. Assim sendo, os riscos políticos para os conservadores que confrontaram Johnson não são tão graves como no Partido Republicano. Paradoxalmente, o sucesso político de Johnson está nas mãos do Partido Trabalhista. Com Corbyn a propor aos ingleses uma política económica que será um suicídio económico semelhante ao Brexit, as eleições arriscam-se a dar a Boris Johnson a coligação ganhadora que elegeu e sustenta Trump.
Neste mundo estanho, há que reconstruir a coligação que considera os valores da decência humana como não negociáveis e assegurar que tem dimensão para vencer. Isto implica políticas e lideranças que conjuguem esses valores com um progresso económico partilhado. Os líderes do nosso futuro terão de ter a originalidade para soluções livres das ideologias do passado, mas ancoradas nos valores e na sabedoria do século XX. Talvez devêssemos pôr cartazes a dizer "PROCURA-SE!". Até lá, cabe a cada um de nós assumir a sua responsabilidade!
Professor na Nova SBE