expresso.ptexpresso.pt - 22 jul. 23:06

“Não podemos permitir que os políticos interfiram com o salvamento de vidas.” E por isso eles estão de volta ao mar e não têm vergonha disso

“Não podemos permitir que os políticos interfiram com o salvamento de vidas.” E por isso eles estão de volta ao mar e não têm vergonha disso

Os Médicos Sem Fronteiras e a SOS Mediterranee estão de volta ao mar. Vão salvar pessoas. Têm bandeira norueguesa e foi de lá que saíram, vão para Marselha, em França. De lá vão partir para onde há mais de um ano não estavam, para onde há muito tempo já tiveram uma dezena de navios de resgate civil e onde hoje só está um: vão para o centro do Mediterrâneo. Sam Turner, chefe de missão, explica assim ao Expresso porque vão: “Não queremos estar no mar, mas esta é uma resposta ao que a UE não está a fazer”

Há cerca de um ano, os Médicos Sem Fronteiras e a SOS Mediterranee tinham o Aquarius, mas entretanto pararam as operações. O que mudou desde então? Porquê voltar ao mar?
A decisão de parar o Aquarius não estava nas nossas mãos. Deveu-se a ações de governos europeus, à pressão política que impedia o navio de sair para as missões. Tivemos problemas em encontrar uma bandeira com que navegar e também processos nos tribunais italianos. Tivemos muita sorte em agora encontrar o ‘Ocean Viking’. Nos últimos meses garantimos que que o navio está totalmente preparado para a operação no mar e isso inclui material tecnológico, um clínica médica a bordo, uma sala de recobro. Temos condições para garantir algum conforto e segurança às pessoas até serem levadas para desembarcar num porto seguro.

Não receiam novamente esses pressões?
Estamos conscientes do que pode acontecer. Sabemos bem o que aconteceu nos últimos meses e os desafios que enfrentamos. Mas isso por si só não é motivo para nos dissuadir. Apenas reforça os nossos princípios humanitários, que não podemos permitir que os políticos interfiram com o salvamento de vidas. O facto de existirem cada vez menos navios no centro do Mediterrâneo só ajuda a justificar porque vamos retomar as operação e garantir que alguém está lá para salvar vidas.

O que vai ser diferentes com o “Ocean Viking”? Preparam-se de forma diferente?
Os princípios básicos da operação são os mesmo que o Aquarius. Durante anos, o Aquarius teve uma contribuição enorme nos salvamentos, sempre em acordo com a lei marítima internacional. É isso que vai continuar a orientar as nossas ações. Esperamos que as guardas costeiras e países por todo o mundo reconheçam isso mesmo e que denunciem os obstáculos que têm impedido as operações de resgate.

Quando esperam começar as operações de resgate?
Nos primeiros dias de agosto.

NurPhoto/ Getty Images

O anúncio de que os Médicos Sem Fronteiras e que a SOS Mediterranee iam retomar as operações de salvamento e resgate no centro Mediterrâneo não era suposto ter sido divulgado como foi...
A transparência rege as nossas operações, não temos nada a esconder ou que nos envergonhe. Cumprimos a lei marítima internacional, seguimos alguns dos mais antigos princípios desta lei. Como ao longo do fim de semana foram levantadas algumas questões sobre as nossas operações, achámos importante manter essa transparência e abertura. Vamos voltar ao mar para salvar vidas porque as pessoas que se continuam a afogar.

No sábado, Matteo Salvini, ministro do Interior italiano, publicou um tweet com a fotografia do vosso navio acompanhado da seguinte mensagem: “Neste momento estão a deixar o mar do Norte para ir para o Mediterrâneo ajudar contrabandistas. É de loucos. Em Itália não desembarcam”. Voltar ao mar, além de uma resposta humanitária, foi uma resposta política?
É sem dúvida uma resposta humanitária a um debate político que tem crescido. Independentemente do lado do debate em que se está, há um princípio que importa muito mais: a vida humana. E esse será sempre o nosso princípio. Vamos sempre procurar salvar vidas e diminuir o sofrimento, tal como vamos questionar os governos que por todo o mundo estão perpetuar estes ciclos de morte.

Como reage a declarações como esta de Salvini?
É o tipo de retórica que está a aumentar, sobretudo ao longo dos últimos anos em que os Estados europeus se têm envolvido numa campanha para empurrar as fronteiras para lá do centro do Mediterrâneo. Essencialmente têm evitado que as pessoas cheguem às costas europeias a qualquer custo. Mas há um custo: a vida. São as pessoas que pagam o preço de uma política europeia fria e calculista. Além disso, os governos estão a tentar criminalizar a ajuda humanitária, que tem feito o trabalho que deveria ser da responsabilidade dos próprios Estados membros. Nós não queremos estar no mar - não temos o desejo enquanto organização de estar no mar a salvar pessoas - mas é uma resposta necessária para garantir que as pessoas não morrem desnecessariamente. A União Europeia deveria garantir que nenhuma vida se perde no centro do Mediterrâneo, mas não assumem essa responsabilidade: já retiraram todos os navios da operação Sophia, estão a criminalizar a ajuda humanitária e a criar esta ideia de que ajudar é um ato criminoso. É absolutamente atroz que estejam a usar todas estas justificações e pôr tantos obstáculos. Na Europa não existe pena de morte, mas criminaliza-se as pessoas que fogem da Líbia e aquelas que as tentam salvar. A consequência é uma sentença de morte para essas pessoas que estão a fugir.

Kevin McElvaney

A responsabilidade do que está a acontecer deve ser partilha?
Não há dúvida que sim. Por isso insistimos tanto na resposta conjunta da União, quer no salvamento, quer no desembarque dos navios. Não há qualquer razão para um membro da União Europeia não ser capaz de resolver o problema de forma eficaz e tendo sempre as pessoas como prioridade.

Suponho que este regresso também esteja de alguma forma relacionado com o facto de a situação na Líbia se estar a tornar cada vez mais instável. Esteve na Líbia e acompanha de perto essa realidade. O que me pode contar sobre o que está a acontecer?
Trabalhei em centros de detenção, onde centenas de migrantes e refugiados são mantidos em condições desumanas - depois de terem sido detidos de forma arbitrária e por tempo indefinido. Aquelas pessoas não têm qualquer forma de sair e a situação só piorou nos últimos meses com os conflitos e confrontos frequentes em Tripoli. Ainda há poucas semanas assistimos a um bombardeamento num centro de detenção, condenando à morte quase 60 pessoas e ferindo perto de uma centena. As políticas europeias e os Estados membros apoiam esta ação e fortalecem a capacidade da Guarda Costeira Líbia. As pessoas que escapam à Líbia através da rota do centro do Mediterrâneo são interceptadas constantemente pela Guarda Costeira e forçadas a regressar. Na semana seguinte ao bombardeamento estavam outra vez mais 200 pessoas no centro de detenção. Isto é, em grande parte, consequência das políticas que fazem com que as pessoas que fogem da Líbia são interceptadas. É inexplicável.

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