visao.sapo.ptCapicua - 24 mai. 08:13

A selva

A selva

Como é que a cidade do Porto, que historicamente sempre se bateu pela liberdade, assiste impávida à perseguição dos seus moradores mais antigos?

Há umas semanas, um incêndio num edifício na zona do Bolhão. Um morto. Alguns desalojados. Depois, outro na casa onde nasceu Garrett, uns dias após a CMP ter feito uma proposta de compra do imóvel. Mais de duzentos anos de História. Em cinzas numa noite.

Relatos de coação a idosos, bullying imobiliário, capangas que ameaçam moradores, máfias que propõem proteção em troca de dinheiro, extorsão, histórias de perseguição como nunca se viu na cidade e uma aparente indiferença por parte das autoridades.

Há uma guerra surda no Porto. E o pior é que as principais vítimas são os nossos mais velhos.

Os jovens, sabemos bem, não têm hipótese de resistência porque não estão protegidos pelos contratos, não têm capacidade de fazer face às exorbitantes rendas do centro da cidade e são cuspidos para (cada vez mais) longe. Os velhos, estando normalmente defendidos pela antiguidade dos contratos de arrendamento e pela proteção legal de despejo para maiores de sessenta e cinco anos, acabam sozinhos nos bairros históricos, entre alojamentos para turistas, resistindo desamparados à pressão brutal do mercado que os quer expulsar.

Mas esta pressão, não se exercendo pela subida astronómica do valor das rendas (protegidas por lei), faz-se com pressão real. Psicológica. Quotidiana. Ora através das obras e reparações que não se fazem propositadamente. Ora pela degradação ativa do imóvel, mandando arrancar contadores, provocando inundações, partindo vidros... E através de ameaças, de jagunços que rondam as casas, de coação com papelada complicada de descodificar, na tentativa de arrancar assinaturas de idosos menos informados, numa escalada de terrorismo que mata os inquilinos de ansiedade. Literalmente.

É lamentável que pouco se fale disto e que, tirando uma ou outra notícia e uma belíssima reportagem da SIC (em que se desvendam as obscuras suspeitas de mão criminosa no incêndio junto ao Bolhão e algumas destas práticas de coação), não estejamos todos, enquanto sociedade civilizada e democrática, a falar muito seriamente sobre o assunto!

Como é que os deixamos sozinhos, como Sónia Braga no filme Aquarius, à mercê do terrorismo de mercado? Como é que justificamos estes incêndios misteriosos e a morte de pessoas? Como é que fechamos os olhos à invasão de interesses e capitais estrangeiros, através de patos--bravos com vistos gold e fundos imobiliários sem rosto, que acham que podem despejar a eito para rentabilizar com o turismo?

Diz-se muito (exageradamente) que o centro do Porto há uns anos era um deserto, perigoso e decadente. Diz-se que agora a cidade renasceu e está aberta ao mundo, valorizada. Mas se esta nova cidade precisa de comer as suas próprias crias para se fortalecer, ou abandoná-las à mercê dos predadores, agora sim é perigosa e depressa ficará deserta e decadente.

Deserta porque perderá os seus moradores, passando a cenário para inglês ver. Oca por dentro. Vazia. E decadente porque a sua graça, como a própria UNESCO assinalou, aquando da classificação do Porto a Património Cultural da Humanidade, é o seu caráter de conjunto vivido
e castiço. É a roupa a secar à janela e a personalidade da sua gente.

De todas as cidades que eu conheço, nenhuma é tão amada pelos seus e tão orgulhosamente apresentada como casa. Os portuenses são tidos por defender a sua cidade de tudo e de todos, sobrevivendo a cercos e a crises, aguerridos e patriotas da sua cidade-nação. Ora, tudo isto é uma facada no coração do Porto. É um ataque aos seus valores fundamentais e à sua carne. É urgente que o Porto defenda os portuenses, como os portuenses sempre defenderam o Porto. Caso contrário deixará de ser o Porto, para ser apenas selva. Ponto.

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