visao.sapo.ptMiguel Carvalho - 23 mai. 08:20

Chico Buarque, o perseguido. E a agitada viagem a Lisboa

Chico Buarque, o perseguido. E a agitada viagem a Lisboa

"Tanto Mar", a música que ele dedicara ao Portugal livre e democrático, foi assumida de peito aberto. “Mas, quando chegou a hora, a coisa foi ficando 'preta'”, explicou, depois de desesperar com a libertação da cantiga por parte da censura. Foi então que resolveu inventar uma desculpa, dizendo que o tema havia sido feito para Moçambique

D.R.

No Brasil, havia ditadura militar. E era longo e vigilante o braço repressivo que atravessava esse “tanto mar” que nos separa, expressão que daria nome a uma canção de Chico Buarque dedicada à revolução portuguesa.

O cantor que agora vai receber o Prémio Camões chegou a Portugal no dia 14 de janeiro de 1978, aos 33 anos, para rever amigos, sentir o aroma dos primeiros anos de democracia, dar entrevistas e gravar um programa para a RTP, intitulado “Fados tropicais de Chico Buarque”, com a participação de Teresa Silva Carvalho, Carlos Paredes, entre outros. Cumprimentar Otelo Saraiva de Carvalho, militar de Abril, de aura ainda intacta naquele tempo, foi, para o compositor e cantor brasileiro “uma obrigação”.

Para trás, Chico deixara, por momentos, um país sem sementes de liberdade, cheiro a cravo ou alecrim. Diversas músicas da sua autoria tinham sido proibidas e assim continuavam. A televisão não deixava cair pingo de noticiário fora do filtro da ordem e da segurança. “Qualquer notícia mais polémica é proibida, como agitação de estudantes, greves operárias, etc”, assegurava o cantor, desamarrando as palavras por cá.

Antes de viajar para Lisboa, Chico deixara pronto um misto de musical e peça de teatro: A Ópera do Malandro. O texto ficara, por essa altura, nas mãos dos censores, à espera de veredito. Só depois poderia ser ensaiado. Tanto Mar, a música que ele dedicara ao Portugal livre e democrático, foi assumida de peito aberto. “Mas, quando chegou a hora, a coisa foi ficando 'preta'”, explicou, depois de desesperar com a libertação da cantiga por parte da censura. Foi então que resolveu inventar uma desculpa, dizendo que o tema havia sido feito para Moçambique. Na realidade, explicara ele, não era mentira, pois a antiga colónia fazia parte de um todo em transformação. “As relações diplomáticas com Portugal estavam meio abaladas e havia um maior interesse em estabelecer relações com a África ex-portuguesa. Por isso, achei que poderia ser uma boa tática para passar na censura. Mas cheguei tarde e a música foi censurada mesmo. Então gravei e mandei a música para cá - a gravação brasileira é só o fundo musical, sem a letra, enquanto o disco português é completo”, explicou Chico Buarque, em 1978, ao Expresso.

De épocas anteriores, o cantor conhecia o fado e Amália Rodrigues – “que eu continuo achando ótima”, precisou. Por esses dias, a fadista e Chico Buarque estavam no top dos discos mais vendidos em Lisboa, ela com Cantigas Numa Língua Antiga, ele com Caros Amigos. Entretanto, Chico já tinha sido tocado pelas composições da nova geração de músicos: Zeca

Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho e mais uns quantos que estavam então a despertar muito interesse no Brasil. O problema é que esse era um amor distante, quase platónico, impossível de ser correspondido. “Não se vendem esses discos lá, simplesmente não existem no Brasil”, lamentava Chico, aguardando por dias melhores.

Era, pois, preciso, continuar a navegar.

Mesmo que houvesse léguas e dois regimes a separar-nos.

De Portugal, Chico seguiu para Cuba. E retornou a casa.

As más notícias não tardaram. Detido à chegada ao Brasil e levado à sede da polícia federal, o compositor e cantor teve de explicar-se a propósito das suas andanças por Lisboa, Havana e outras capitais de países com os quais o Brasil fardado não tinha relações diplomáticas. “A coisa está preta”, admitiu Chico Buarque à saída do interrogatório, citado pela Imprensa. “Eles querem saber tudo. Ir a Cuba não é crime, que eu saiba, e se o motivo da minha prisão for esse e o facto de me ter encontrado com exilados por lá, posso dizer que esbarrei num número muito maior de brasileiros em Lisboa”, afirmou, sem se intimidar.

Nessa ocasião, a polícia política do Brasil apreendeu 78 discos e 92 livros a Chico Buarque, comprados em Lisboa, Roma, Paris e Havana. Ao rol, nem sequer escapou um volume de gravuras oferecido por um diretor da TAP. Havia, nessa altura, mais do que um oceano entre dois países. Agora, apesar de Bolsonaro, das festas que murcharam e de retrocessos vários, o que pode um Prémio Camões para resgatar, de novo, esse tanto mar que, afinal, nos une, em nome das palavras libertadas?

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