expresso.ptexpresso.pt - 22 mai. 23:43

'Talibã americano' vai ser libertado

'Talibã americano' vai ser libertado

Ao fim de 17 anos, o detido 001 da guerra americana no Afeganistão sai da cadeia esta quinta-feira, reavivando o debate sobre os perigos de libertar extremistas

Para muitos americanos, e não só, a imagem que ficou de John Walker Lindh mostrava-o de barba crescida e desgrenhada, deitado numa maca, completamente nu, de olhos vendados e braços atados. Ele esteve dois dias nessa situação vulnerável e humilhante, que em condições normais teria gerado compaixão nos seus compatriotas.

Mas o facto de ter sido capturado quando combatia ao lado dos talibã e contra os americanos (na verdade, contra a Aliança do Norte, o grupo anti-talibã ao qual os EUA se juntaram após o 11 de setembro), deu origem a um sentimento generalizado de reprovação. Lindh era um traidor que não podia ter perdão. Assim pensava boa parte dos americanos, apesar de ele ter ido viver para aquela zona do mundo quando tinha apenas 17 anos, ou seja, três anos antes dos atentados em Nova Iorque e Washington e da invasão americana.

Capturado em novembro de 2001, Lindh seria o detido 001 dos americanos nessa guerra. Além da sua ligação aos talibã, esteve envolvido numa violenta revolta numa prisão, da qual resultou a morte de Mike Spann, um agente da CIA que o estava a interrogar. Nenhuma prova de ligações concretas dele à morte de Spann surgiu durante o posterior julgamento de Lindh nos Estados Unidos. Apesar das acusações iniciais que lhe atribuíam uma conspiração para matar americanos - crime que, a ser provado, o manteria atrás das grades até ao fim da vida - ele acabou por ser condenado por dois crimes relativamente menores: providenciar serviços a uma organização terrorista e ser portador de armas durante atos violentos.

O acordo que as autoridades lhe propuseram, e que ele aceitou, deixava cair todas as outras acusações a troco de Lindh aceitar explicitamente aquelas duas - o juiz fez questão que ele afirmasse claramente o que estava a admitir - e de se comprometer a não falar publicamente durante todo o tempo que estivesse preso. O objetivo foi o de evitar que contasse as torturas de que fora objeto. Essa e outras irregularidades invalidavam as confissões que ele tinha feito, impedindo-as de serem usadas durante o julgamento.

Revolta e massacre na prisão

As circunstâncias em que aconteceu a revolta que vitimou Spann também poderão ter contado para o tribunal. Milhares de talibãs que se haviam rendido à Aliança de Norte foram transportados em condições brutais, com uma quantidade de mortes pelo caminho. Na prisão para onde Lindh e outros foram levados, corria o rumor de que iam ser executados. Isso não aconteceu diretamente, mas a supressão da revolta levaria a que, dos 300 a 500 presos, apenas 85 sobrevivessem.

Entre eles contava-se Lindh, que, juntamente com outros, se havia escondido numa cave. Para os tirar de lá, o líder da Aliança do Norte que comandava a operação, o general Abdul Rashid Dostum, usou bombardeamentos, petróleo em chamas e água gelada. Os que acabaram por sair foram os que sobreviveram a isso. (Mais tarde, Dostum seria acusado de matar deliberadamente, por sufocação em contentores, cerca de dois mil prisioneiros talibã. Um de vários atos que o levam a ser considerado criminoso de guerra e já o levaram a ter de se exilar temporariamente do país).

Outras possíveis atenuantes de Lindh incluíam a sua idade e um passado familiar algo conturbado - o pai saiu de casa para ir viver com outro homem quando ele era adolescente. Foi não muito depois que ele se tornou muçulmano, depois de frequentar uma escola alternativa onde conheceu várias culturas do mundo. A própria atitude permissiva dos pais ajudava a compreendê-lo. Quando ele decidiu ir aprender árabe para o Iemen, apoiaram-no; e mesmo quando pediu autorização para se transferir para o Paquistão, o pai não achou mal. Soube-se depois que ele tinha ido para o Afeganistão, onde recebeu treino em campos associados a Bin Laden. Pelo menos uma vez, assistiu a uma alocução do líder da Al Qaeda.


Os pais de Spann não perdoam

Em julgamento, Lindh alegou que tinha tentado ir-se embora quando viu os americanos entrarem na guerra, mas tivera medo. Garantiu que jamais tivera intenção de combater os seus compatriotas. No final, um juiz condenou-o a 20 anos de cadeia, pena considerada demasiado leve pelos seus críticos - incluindo os pais de Spann, que ainda hoje continuam a achá-lo tão culpado pela morte do filho como os homens que o executaram - e demasiado leve pelos seus defensores.

Quando passaram dez anos sobre o seu encarceramento, em 2011, os pais de Lindh renovaram os pedidos públicos de libertação, sem resultado. Se vai ser libertado esta quinta-feira, ao fim de 17 anos na cadeia, é devido à regra que retira 15 por cento ao tempo de pena em casos de bom comportamento. Lindh tem sido, ao que tudo indica, um recluso exemplar.

A grande dúvida está em saber se renunciou à ideologia que o levou a aliar-se aos talibã. Documentos de 2016 obtidos junto do Centro Nacional Antiterrorismo sugerem que não. Lindh terá exprimido simpatia pelo Daesh, recusando condenar o uso da violência e continuando a traduzir textos extremistas.

Dois senadores americanos, o republicano Richard Selby e a democrata Maggie Hassan, escreveram aos serviços prisionais a pedir esclarecimentos sobre o que se faz para evitar a reincidência em antigos terroristas que são libertados. "Temos de considerar as implicações de segurança para os nossos cidadãos e as comunidades que recebem indivíduos como John Walter Lindh, que continuam a apelar abertamente à violência extremista".

Um advogado com experiência na defesa de alegados terroristas, Joshua Dratel, chamou à preocupação dos senadores "uma solução à procura de um problema". De qualquer modo, o tribunal impôs condições estritas para a libertação de Lindh. Ele não pode sair do país, e em princípio fica proibido de frequentar a internet. Caso seja autorizado a fazê-lo, as suas comunicações têm de ser monitorizadas a tempo inteiro. E não pode utilizar nenhuma língua que não seja a inglesa.

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