visao.sapo.ptvisao.sapo.pt - 21 mai. 14:13

Uma noite insólita – e isto não é um insulto

Uma noite insólita – e isto não é um insulto

Quem não arrisca, não petisca. É o melhor conselho, em modo frase-feita, que podemos dar a quem sobe a um dos mais charmosos rooftops de Lisboa para jantar. No The Insolito a ementa sazonal faz jus ao nome, por isso deixe lá as tábuas de queijos para os monótonos turistas e experimente, sem medos, as criações do chefe António Sousa

D.R.

Está um daqueles dias de verão antecipado e estamos mesmo a precisar de uma pausa: sair da frente do ecrã, lavar a vista neste rooftop e principiar a refeição com um cocktail. Adivinharam-nos o pensamento, porque ainda nem tínhamos acabado de disparar sobre a impecável Lisboa que se avista do The Insólito, e já estávamos com um fresquíssimo Olissipo na mão (vodka, ananás e hortelã). Ainda é cedo, mas praticamente não há lugar na esplanada, repleta de estrangeiros em frente a copos de vinho e tábuas de queijo.

Gostamos disso, mas não aqui. Quem vai a este restaurante e bar, fá-lo ou deveria fazê-lo para arriscar, para entrar num universo paralelo à mesa. Sendo assim, venha de lá esse cerelac para adultos (€7), igualzinho na cor, na textura e até nos grumos. Só que não, felizmente não tivemos de comer uma papa no arranque da refeição. Trata-se, isso sim, de um creme de topinambur, um tubérculo originário da América do Norte e pouco conhecido por cá.

António Sousa, 29 anos, aparece na mesa, de boina a segurar-lhe o cabelo curto. Tem um sotaque carregado do Porto e conta que está nesta cozinha há dois anos, embora o The Insólito já exista desde 2014. Tem a noção de que arrisca de mais, por isso parece aliviado por termos comido a papa toda e ainda acrescentarmos alguns elogios. "Sabemos que pode haver muita gente a estranhar."

O Campo, com diversas texturas de couve-flor

O Campo, com diversas texturas de couve-flor

A carta de vinhos segue a mesma cartilha. Só tem marcas nacionais e de preferência inusitadas. Despachado o cocktail, enchem-nos o copo com um branco do Algarve (Barranco Longo), que consta na lista como vegan. Bebe-se bem, mas o Campo (€6) que entretanto no trazem da cozinha, come-se ainda melhor. Trata-se de várias texturas de couve-flor, com destaque para o puré queimado, que espalha um paladar fumado por todo o prato. O chefe acrescentou ainda azedas, acelgas, uvas-passas, raiz de lótus, folha desidratada e batata violette.

António Sousa assume que gosta de trabalhar com sabores intensos, menos vulgares. Os produtos até podem ser tradicionais, mas a forma de os temperar ou confeccionar marca a diferença. "Não fazia sentido vir aqui comer um arroz de marisco", sintetiza. Concordamos.

Logo que vemos o rosbife de javali (€12) pensamos que, afinal, os produtos não são assim tão convencionais e lembramo-nos imediatamente de Obélix e a sua obsessão por comer este animal. Mas a confeção a 52 graus e o acompanhamento de agriões em salada fazem esquecer a estranheza da carne. O nori de atum (€11) completa na perfeição o desfile de entradas. Leva tantos ingredientes que nos perdemos durante a explicação do chefe. Retivemos, isso sim, a frescura do prato e o bem que nos soube. Nas colunas, ouvimos Freedom, dos Wham, enquanto tentamos apanhar todos os pedaços de liberdade criativa que o chefe usou neste tártaro.

Para acompanhar o peixe, bebemos um Terras da Avó, de umas vinhas do norte da ilha da Madeira, bem perto do mar. Diz que lhe chamam o vinho do demo porque cheira a enxofre, mas casa muito bem com o bacalhau de meia cura, cozido a baixa temperatura, que se faz acompanhar por ervilha-torta, este legume maravilhosamente sazonal, e endívias (€20). Peixe é coisa que não falta nesta mesa ainda havemos de provar um pregado com acelgas e salicórnia (€22) e corvina do mar com cuscus de couve-flor e brócolos (€21). Não é por acaso que este último se chama Corvina Linda. É que não se resiste a fotografar o pedaço de peixe em cama verde, num prato preto debruados a verde. Definitivamente, hoje já não se cozinha apenas para o estômago.

Rosbife de javali, em homenagem ao Obélix

Rosbife de javali, em homenagem ao Obélix

Pedimos contenção no capítulo das carnes, mas mesmo assim provamos uma delicioso leitão (€16), cozinhado a baixa temperatura durante 12 horas. A acompanhar, um puré de pimenta que remete para o molho que normalmente acompanha esta iguaria ali para os lados da Bairrada. Claro que depois desta crocância toda e desta viagem pelo norte, o carré de borrego (€24), apesar de ter estado no forno durante quatro horas, fica a perder. Tudo uma questão de gosto.

À medida que a refeição se aproxima do final, colecionamos pormenores da decoração, toda ela insólita, claro. Desde o conjunto de lustres, que estão na zona do bar, às bonecas com asas, que vemos mesmo em cima das nossas cabeças, origamis, flores artificiais, dinossauros, santinhos... Não há um prato igual ao outro, nem as mesas e cadeiras fazem par.

Inês Fraga é a culpada de vir para a mesa uma enorme amostra de todas as sobremesas da carta, tudo feito aqui, "menos a fruta porque não temos quintal". Nota-se também os toques insólitos, a começar pela marquise de chocolate com gomas de camomila e pó de azeite, passando pela tarte de chocolate e flor de sal que é servida com um shot de vinho do Porto, e pelo go nuts. Não se trata de um pleonasmo, resulta, isso sim, da liberdade total dada à pasteleira que aproveitou a deixa para servir bolo de pistácio, gelado de nozes, espuma de avelã e frutos secos caramelizados. Talvez esta seja a opção mais adequada para um final de noite que se previa de evasão, mas que acabou por ser mesmo insólita. Mas isso são outros quinhentos e fica para outra história.

Insólito > R. de São Pedro de Alcântara 83, Lisboa > T. 21 346 1381 > seg-dom 19h-23h, bar seg-dom 18h-2h

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