visao.sapo.ptJosé Brissos-Lino - 16 jan. 08:05

Não é o rei que vai nu, somos todos nós…

Não é o rei que vai nu, somos todos nós…

Um dos históricos pomos de discórdia entre católicos e protestantes é a velha questão da idolatria, ou culto das imagens de Maria e dos santos. Mas nem uns nem outros se parecem incomodar hoje com a nova idolatria no espaço mediático. Esta, sim, verdadeiramente preocupante

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Em Portugal, um cientista com provas dadas e a trabalhar em projectos de investigação relevantes para a humanidade, ganha uma miséria em comparação com uma apresentadora de televisão que consiga conquistar audiências, mesmo lançando mão de uma colecção de boçalidades, disparates, vulgaridade, manipulação psicológica, emocionalismo provocado e outras “ferramentas” do tipo. Até os políticos se prestam a descer a esse nível em nome da popularidade a todo o custo, como se viu recentemente com o presidente da república que telefonou em directo para um programa de entretenimento da manhã, por nenhuma razão.

Um cantor romântico medíocre arrasta multidões atrás de si, por todo o país e estrangeiro, incluindo um fiel séquito feminino, que vai desde balzaquianas infelizes ao amor a avozinhas de idade avançada, passando por solitárias de todas as idades, sem se entender muito bem as razões de tal fascínio.

Um empresário nascido em berço de ouro e tornado famoso pela televisão salta para a política no país mais importante do mundo e ganha a presidência, mesmo revelando um discurso e mentalidade duma criança de sete anos, e uma conduta irresponsável, racista, misógina e intolerante. Contudo é seguido por uma multidão, alguns dos quais matariam por ele. Ele próprio afirmou que, mesmo que assassinasse uma pessoa na via pública continuaria a ser apoiado firmemente pelos seus.

Um atleta famoso, até quando apresenta comportamentos anti-desportivos graves é sempre apoiado e justificado pelos seus indefectíveis, os mesmos que não perdoariam o mais pequeno deslize aos adversários, agindo assim numa lógica sectária e de carácter tribal.

Também em matéria de fé, verificamos que alguns líderes se dedicam ao abuso religioso e estimulam a idolatria da sua pessoa por parte dos fiéis. Mesmo quando confessam os erros mais graves, os seguidores minimizam tal retratação e continuam a endeusá-los de modo mais ou menos acéfalo.

Embora os ídolos contemporâneos sejam sobretudo virtuais e se movam no universo mediático, a sua necessidade está inscrita no humano e sempre esteve presente na sociedade. As pessoas precisam de modelos referenciais para admirar e seguir. O cristianismo encara a questão com princípios valorativos como honrar quem merece, pela sua obra (Romanos 13:7), ou pela posição familiar: “honra teu pai e tua mãe” (Mateus 19:19) ou comunitária: “honrai ao rei” (1 Pedro 2:17), ou os mais velhos e vulneráveis: “honra as viúvas” (1 Timóteo 5:3), considerando sempre o outro: “cada um considere os outros superiores a si mesmo” (Filipenses 2:3).

O brasileiro Ronaldo Helal estudou a forma como são narradas na comunicação social as trajectórias de vida de ídolos do futebol, normalmente transformados em heróis, ao contrário dos ídolos da música ou dramaturgia. Como a competição é inerente ao espectáculo, a luta desportiva explica a diferença. Embora tanto os ídolos do desporto como da música se tornem celebridades, os primeiros são mais facilmente considerados “heróis”. Autores como Edgar Morin e Joseph Campbell definem a diferença entre o conceito de celebridade e o de herói. É que o primeiro vive para si, mas espera-se que o segundo trabalhe para redenção da comunidade.

Outros autores identificaram a idolatria do corpo como uma questão emergente na sociedade contemporânea, revelada, por exemplo, pelos altos índices de cirurgias plásticas. Outros, ainda, identificaram a idolatria do capital, do mercado, da religião, da juventude ou do dinheiro. Paul Tillich aponta a relativa facilidade com que nos envolvemos em processos que levam a atitudes idolátricas, normalmente devido à falta de reflexão e sentido crítico.

O escritor dinamarquês Hans Christian Andersen do século XIX, que viajou por terras portuguesas, deixou-nos a deliciosa estória infantil “O Rei Vai Nu”, onde relata como dois aldrabões enganaram o rei, fazendo-o crer que lhe haviam tecido umas vestes que só os inteligentes podiam ver. A moral da estória visa a vaidade do monarca, que assim acabou por cair no ridículo ao desfilar na rua em ceroulas. Os súbditos não ousaram denunciar a verdade nua e crua (literalmente), com medo de despertar a fúria do rei ou por não quererem passar por estúpidos, até que uma criança gritou inesperadamente, na sua inocência: “O rei vai nu!”…

Talvez seja o momento de gritar que nos tornámos uma sociedade idólatra e que os nossos ídolos vão nus. Mesmo os virtuais. E nós, idólatras, também.

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