www.publico.ptmjlopes@publico.pt - 18 nov. 07:40

O pôr do Sol e a minha sobrinha de quatro anos

O pôr do Sol e a minha sobrinha de quatro anos

A minha sobrinha tem uma alegria transparente quando mergulha no mar, quando faz construções na areia, quando brinca com a cadela, quando se ri. Ela aproveita a vida com uma perna às costas, e esse talento não é assim tão simples.

Estávamos a sair da praia, ainda havia uns pontinhos minúsculos e prateados no mar, aquele vento adocicado que deve vir do deserto. Estávamos bem no meio daquele Verão a entardecer devagarinho, mas eram horas, tínhamos de ir. Saímos da nossa praia escondida pelas arribas e metemo-nos a caminho. Ela acompanhava-nos toda despachada, sem relógio, sem tempos, sem medos, sem medo do mar, sem medo das arribas, sem medo do calor ou do frio.

A minha sobrinha tem quatro anos e o que me espanta não é o mundo que ela vê, embora isso me devesse espantar também. O que me espanta é o espanto dela pelo mundo e pela vida. Às tantas, a meio do caminho, ela pára. Pára de repente, cruza os braços, põe uma cara séria, o assunto era sério, e comunica-nos: “Agora vou ver o pôr do sol.” E nós, apanhados desprevenidos pela solenidade da comunicação, tivemos de aceitar a ordem e ver também o pôr do sol. Não se nega a poesia do mundo a uma criança. Ela gostou de ver, mas eu gostei mais. A verdade é esta: depois dos mil pores do Sol que já vi na vida, aquele soube-me diferente. Posso não me espantar tanto com o mundo, mas espanto-me com o espanto dela pelo mundo e pela vida, e isso, para mim, vai quase dar ao mesmo.

Ao fundo, no bar da praia, alguém tocava ao vivo uma versão da What a wonderful world, de Louis Armstrong. O cenário não podia ser mais o de um postal, era quase piroso. A prata do mar, a areia sossegada, a música — a versão era má — e nós ali pespegados no meio das arribas a ver o pôr do sol. Não, ninguém fez uma fotografia para o Facebook.

A protagonista da cena era ela. Uma pequena de braços cruzados, olhos até ao longe, dali não saía sem que o último raio entrasse no mar. “Agora vou ver o pôr do sol.” Como se nos dissesse que não queria saber de horas, nem de jantares, nem de banhos em casa. Nem de relógios, nem de horas. Eu olho para ela e espanto-me.

Tem uma alegria transparente quando mergulha no mar, quando faz construções na areia, quando brinca com a cadela, quando se ri. Ela aproveita a vida com uma perna às costas, e esse talento não é assim tão simples.

Vamos perdendo o dom com o tempo, se calhar. Passamos a procurar de outras formas, no mindfulness e na auto-ajuda e seja lá mais em quê, essa alegria pelo momento. Esse gosto pela vida. Pelas coisas boas da vida: os banhos de mar, na água gelada, na água quente; as correrias na areia; o mistério dos livros novos.

A minha sobrinha também gosta de cantar alto. Vamos pela rua fora até ao café a cantarolar o Yellow submarine: “We all live in a yellow submarine, yellow submarine, yellow submarine.” E eu aproveito ninguém reparar em mim quando ela está por perto para cantar também, bem alto e muito mal.

Agora que os dias frios já chegaram, estamos a programar levá-la à neve. Vai ver neve pela primeira vez. Espero que, nessa altura, esteja um manto imenso de neve na serra da Estrela. Quero ver a reacção dela à novidade da paisagem. Eu já vi neve, mas devo andar tão distraída que nem me lembro bem de nada. Não faz mal. Para mim, quando estou com ela, é como se fosse tudo a primeira vez.

Acontece-me com ela, também com a minha outra sobrinha e, claro, com a minha filha, mas deixo essa parte para próximas crónicas, porque, apesar de a minha filha ser ainda muito pequenina, o tamanho dela no mundo nem cabe dentro de mim. Deixo para a próxima o poema de Jorge de Sousa Braga: “Tudo gira, / Neste mundo / Tudo gira, / A Lua em redor da Terra, / e a Terra em redor do Sol, (…) / Tudo gira / Neste mundo / Tudo gira / Que eu gire em redor de ti / Não me admira.”

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