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O milagre das rosas

O milagre das rosas

Penacho no chapéu de caça do Governo, o Bloco de Esquerda revelou-se mais uma vez, na última convenção. Quem assistiu à lista de conquistas alcançadas percebe que o BE abre garrafas de espumante por obter as migalhas da burguesia. Santa Isabel do poder, eis um falso grupo “esquerdista” que não precisa de terceiros para se desmascarar - Opinião , Sábado.

Saía Isabel de Aragão do castelo de Leiria, naquele Janeiro frio do fim do século XIII, mais uma vez para dar pão aos mais pobres do reino. A sua comitiva foi interceptada pelo cortejo do marido, D. Dinis. O monarca era tido como cioso do rigor financeiro, do equilíbrio orçamental e da austeridade. Nada de despesa pública não contabilizada.

Nessa manhã gelada, o Rei desconfiava. Suspeitava sobretudo do volume no regaço da nobre filha de Constança da Sicília. Já ciente dos boatos sobre a desenfreada solidariedade da consorte, Dinis interrogou-a duramente: "O que trazeis ao colo?"
"São rosas, senhor." E perante a insistência e a impiedade real, Isabel abriu o manto. Os alimentos tinham-se transformado em rosas. Ou assim contou, a partir do século XVI, a lenda popular.

O Bloco de Esquerda, que a oposição trata como conteúdo ideológico, comissário doutrinário e grilo sábio do Pinóquio governante, colocou-se na posição da Rainha Santa Isabel, na sua última e apregoada convenção.

Na verdade, da boca das dirigentes saiu o longo rol de medidas sociais de apaziguamento e conforto dos desfavorecidos da República. Descongelamentos, desbloqueamentos, actualizações, pequenos aumentos, microrregalias em salários, pensões, subsídios e abonos. Tudo porque o Bloco "esteve presente", a convencer o Paço.

O BE assume assim que retirou todas as migalhas do banquete capitalista para a mesa do povo. E ficou contente com a realização. Antes isso do que nada.
O BE continua incapaz de mudar o sistema capitalista, o modo de produção, o modelo europeu e a moeda/moda única.
O BE continua a apoiar um governo fortemente empenhado na União política e económica produzida por tecnocratas, grandes empresários, burocratas e legiferadores conservadores ou meramente reformistas.

O BE permanece em acordo com um executivo que reforça e se solidariza com a NATO, esse braço armado do imperialismo.
Mas isso é a crueza de Dom Dinis e dos seus números.
O Bloco é dono do coração, dos sentidos, dos palpites, dos desfalecimentos e das ternuras das massas.

Dá pães aos pobres e convence o Tesouro de que são rosas. Não pede uma revolução, mas paliativos. Não lhes chama, claro, "caridade", mas antes "conquista".

Mas é caridade para que se cale para sempre e deixe o casamento correr em paz.
Enquanto Santa Isabel da geringonça, o BE assume-se assim como provedor dos vivos, a face humana de um executivo manietado por Bruxelas e pelo Eurogrupo, a esposa crítica mas fidelíssima de um governante austero, mesmo que este tire com uma mão o que o Bloco dá com duas.

O que torna o Bloco naquilo que se suspeitava: o sofrível actor e encenador musical de uma grande comédia, que legitima "o sistema" enquanto parece odiá-lo.

P.S. – Há má gestão das florestas da Califórnia, como foi reconhecido recentemente pela comissão independente Little Hoover (LHC), apoiada pelos dois partidos. Má gestão da água, dos recursos materiais e humanos, da ligação ao público e aos construtores civis, e de controlo de matas que crescem de forma desnaturada, com milhões de árvores mortas não abatidas, e de outros milhões de unidades supérfluas. Isso tem consequências devastadoras, num estado em que 1/3 do território é florestal. Mas dito isto, tem de se reconhecer que 55% das florestas são de propriedade ou posse federal, através do FSDA. Assim, é ao governo da União, através do Departamento da Agricultura, que compete reordenar o território. Décadas de negligência não podem ser branqueadas.

P.S.2 – É verdade que basta uma maioria absoluta (50% mais 1) na Câmara dos Representantes, em Washington, para iniciar um processo de impeachment (impugnação) presidencial. Os democratas possuem hoje essa maioria. Mas o mesmo processo só surte efeito se o Senado, por uma vantagem ainda maior (2/3), condenar o chefe de Estado. Os democratas não possuem essa maioria, dado que a Câmara Alta é controlada por republicanos. 

Nos chifres da política

Entendo e respeito a tradição tauromáquica, mas não sou um amante, e revolta-me o sofrimento animal. Por outro lado, sempre admirei a galhardia e o sacrifício dos forcados, que não existem na lide à espanhola.
Parece-me ainda justo transferir a legalização do espectáculo para as comunidades humanas de base, as autarquias: é preciso responsabilizar as pessoas pelos seus gostos. Ausente, o Estado deixa de ser necessário.
Fazer do caso uma querela "ideológica", com partidos à mistura, é sinal dos tempos. Em Espanha, o PSOE também se dividiu entre os aficionados de Felipe González e os horrorizados de Zapatero.
Por fim, conheço quem defenda o começo da eutanásia e queira o fim das touradas.  

Podia ser pior

Os estados europeus vivem em paz entre si, desde 1945.
Apesar de disputas comerciais, de discussões sobre fronteiras e minorias, não houve conflito armado entre duas nações continentais, durante 73 anos. Deu-se, claro, a dissolução violenta da Jugoslávia, mas foi uma guerra civil. E a questão de Chipre, apesar da gravidade, não levou ao enfrentamento militar, directo e formal, entre Turquia e Grécia.
Se olharmos para a Europa desde o século XII, é quase impossível encontrar tantas décadas pacíficas.
E podemos arranjar todas as metáforas, mas as famílias sabem o que é uma guerra a sério: é quando, em massa, perdem os seus filhos, ficam órfãs e viúvas, refugiadas ou internadas. Perdidas. 

Histórias de (en)cantar

O trio do magistral contrabaixista Avishai Cohen (na foto) transporta memórias, e é imperdível: 20 na Casa da Música, 21 no Convento de S. Francisco (Coimbra), 22 no CCB, 25 no Cine-Teatro Louletano. E pode sempre ouvir-se 1970, no qual o seu jazz impressionista, figurativo, se torna pop sofisticado. Quanto ao quarteto Danças Ocultas, um dos melhores grupos portugueses das últimas décadas, vai à CdM no dia 21, e lança o CD Dentro desse Mar: acordeões mágicos, em todos os dialectos. Entre a balada, o folk e o jazz, há ainda duas vozes: Luísa Sobral, com Rosa, e Lisa Ekdahl, em More of the Good. E o mestre europeu do cravo, Pierre Hantäi, desvenda e interpela Bach (21), na Gulbenkian: vibrante.

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